REVISTA EDUCACIÓN SUPERIOR Y SOCIEDAD

2021, VOL. 33 Nº 2, 637-660

https://doi.org/10.54674/ess.v33i2.337

e-ISSN: 26107759

Recibido 2020-08-18│Revisado 2021-05-18│Aceptado 2021-07-29│Publicado 2021-11-15

 

 

 


Pode a pedagogia universitária ajudar a inovar? A pedagogia universitária nas propostas inovadoras de universidades brasileiras

 

Ligia Paula Couto* @ https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSNfWYTcCAZvEGsSFZ1txbWDB-BbGS9NXIvs46eBwRcKcb97noqr8ag9zTjvaHe_8qoX9A&usqp=CAU

 

*Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil

 

 

Resumo: Este artigo objetiva analisar o papel da pedagogia universitária em projetos inovadores de duas universidades brasileiras. Assim, será avaliado como projetos inovadores podem cumprir sua função social e interagir com a pedagogia universitária (Cunha, 2005, 2006 e 2007; Pimenta e Anastasiou, 2005; Almeida e Pimenta, 2009; Veiga et al, 2012). Na metodologia, de base qualitativa, foram selecionados o projeto político pedagógico ou outros documentos que possibilitaram a compreensão da inovação bem como determinados sujeitos das instituições para serem entrevistados. Na análise, se constatou que as universidades estão inovando e trabalhando a pedagogia universitária. No entanto, esse trabalho é mais presente na instituição que tem no ensino sua atividade fundante, do que naquela em que este fica subsumido na atividade de pesquisador do docente. Como resultado, temos a instauração de uma cultura da docência e uma cultura mais voltada à pesquisa. Podemos concluir que é necessário aproximação da teoria/prática no que se refere à inovação e a pedagogia universitária pode contribuir de maneira fundamental, principalmente no tocante à formação docente, para o aspecto inovador do projeto.

Palavras-chave: Pedagogia Universitária; Formação Pedagógica do Professor Universitário; Identidade Docente; Universidade; Inovação.

 

¿Puede la pedagogía universitaria ayudar a innovar? La pedagogía universitaria en las propuestas innovadoras de universidades brasileñas

Resumen: Este artículo analiza el rol de la pedagogía universitaria en proyectos innovadores de dos universidades brasileñas. De esta forma, se analizarán si dichos proyectos innovadores pueden cumplir su función social e interactuar con la pedagogía universitaria (Cunha, 2005, 2006 e 2007; Pimenta y Anastasiou, 2005; Almeida y Pimenta, 2009; Veiga et al, 2012). En la metodología, de base cualitativa, fueron seleccionados el proyecto político pedagógico y otros documentos que posibilitaron la comprensión de la innovación y se entrevistaron determinados sujetos de las instituciones. En el análisis, se constató que las universidades innovan y trabajan la pedagogía universitaria. Pero ese trabajo está más presente en la institución que considera la enseñanza como actividad principal, que en aquella en la que está subsumida en la actividad de investigación del profesorado. Como resultado, tenemos la instauración de una cultura de la docencia y una cultura más atenta a la investigación. Podemos concluir que es necesario acercar teoría/práctica cuando se aborda la innovación y que la pedagogía universitaria puede contribuir, principalmente para la formación docente, al aspecto innovador del proyecto.

Palabras clave: Pedagogía Universitaria; Formación Pedagógica del Profesor Universitario; Identidad Docente; Universidad; Innovación.

 

Can university pedagogy help to innovate? University pedagogy in innovative proposals in Brazilian universities

Abstract: This article analyzes the role of university pedagogy in innovative proposals in two Brazilian universities. The research evaluates if university projects conserve their social meaning and interact with studies in university pedagogy (Cunha, 2005, 2006 e 2007; Pimenta and Anastasiou, 2005; Almeida and Pimenta, 2009; Veiga et al, 2012). From the qualitative methodology that was used in this work the pedagogical political projects or other documents were selected in order to better understand innovation and some individuals of the institutions were interviewed. The analysis demonstrated that both institutions innovate and use university pedagogy. Although the work with this pedagogy is much more present in the institution that considers teaching as a fundamental activity than in the institution where teaching is incorporated in research activities. As a result, there is the establishment of a teaching culture and a culture of research detached from teaching. This study reveals that an approximation of theory/practice is necessary when innovation is approched and that university pedagogy can contribute, mainly for teacher training, to the innovative aspect of the project.

Keywords: University Pedagogy; Teacher Training for University Professors; Teacher Identity; University; Innovation.

 

La pédagogie universitaire peut-elle aider à innover? La Pédagogie universitaire dans les propositions innovantes des universités brésiliennes

Resume: Cet article vise à analyser le rôle de la pédagogie universitaire au sein des projets innovants de deux universités brésiliennes. Il évalue comment les projets innovants peuvent remplir leur fonction sociale et interagir avec la pédagogie universitaire (Cunha, 2005, 2006 et 2007; Pimenta et Anastasiou, 2005; Almeida et Pimenta, 2009; Veiga et al, 2012). À partir de la méthodologie qualitative, le projet politique pédagogique ou d'autres documents permettant de comprendre l'innovation ont été sélectionnés et certains sujets des institutions ont été interrogés. Dans l'analyse, il a été constaté que les universités innovent et travaillent basées sur la pédagogie universitaire. Cependant, ce travail est plus présent dans l'institution qui base son activité sur une culture pédagogique et moins dans l'institution qui a une culture plus axée sur la recherche. Il est possible de conclure qu'un abordage théorique et pratique est nécessaire en matière d'innovation et que la pédagogie universitaire peut contribuer de manière fondamentale, notamment concernant la formation des enseignants, à l'aspect innovant du projet.

Mots clés: Pédagogie Universitaire; Formation Pédagogique des Enseignants Universitaires; Identité des Enseignants; Université; Innovation.

 

 

1.    INTRODUÇÃO

A pedagogia no ensino superior

Este artigo, resultado de uma pesquisa de doutorado, objetiva analisar o papel da pedagogia universitária em projetos inovadores de duas universidades brasileiras na segunda década do século XXI, buscando avaliar como esses projetos podem transformar o ensino superior para cumprimento de sua função social e interação com a pedagogia universitária.

Historicamente, a educação superior brasileira foi marcada por uma falta de cuidado com a formação pedagógica de seus docentes. Mesmo na área da educação, estudos relacionados a essa temática não se destacavam até pouco tempo. É o que constataram André, Simões, Carvalho e Brzezinski (1999) em sua pesquisa publicada no artigo Estado da arte da formação de professores no Brasil. No entanto, ainda nos anos 90, encontramos pesquisadores brasileiros que discutiam a formação pedagógica do docente no contexto do ensino superior. Entre eles, Léa Anastasiou (1998); Marcos Masetto (1998); Maria Isabel da Cunha e Denise Leite (1996). Na primeira década do século XXI, os títulos sobre essa temática aumentaram consideravelmente e a criação de formações continuadas para docentes das universidades, como afirma Anastasiou (2009), vem se intensificando desde 1999.

Assim, na área da pedagogia, houve um aprofundamento dos estudos e pesquisas acerca da função social da universidade e/ou do ensino superior, da formação pedagógica do professor e de questões curriculares e didáticas. Nesse movimento, a pedagogia se adjetivou e passou a ser compreendida como pedagogia universitária. Mas onde estaria seu foco? A pedagogia é a ciência da educação que auxilia a pensar e discutir questões relacionadas ao projeto político institucional, currículo, avaliação, finalidades da educação, perfil dos alunos, etc. A pedagogia universitária, portanto, possibilitaria o professor universitário refletir e debater sobre o projeto da instituição na qual atua, o projeto do/s curso/s em que leciona, a função do processo de ensino-aprendizagem que desenvolve, o perfil de seus alunos, as formas de avaliação condizentes com a proposta institucional e de curso, etc.

No que se refere às pesquisas da pedagogia universitária realizadas no Brasil, alguns estudiosos têm mais a contribuir para essa discussão. É o caso de Pimenta e Anastasiou (2005) e Cunha (2005, 2006 e 2007). Há também os trabalhos de Masetto (2003), Anastasiou e Alves (Orgs.) (2006) e Veiga et al (2012).

No livro Docência no Ensino Superior (2005), ressalto a tese defendida por Pimenta e Anastasiou sobre a importância de se promover uma identidade docente do professor universitário, a qual surgiria em um processo formativo continuado.

A docência na universidade configura-se como um processo contínuo de construção de identidade docente e tem por base os saberes da experiência, construídos no exercício profissional mediante o ensino dos saberes específicos das áreas de conhecimento. Para que a identidade do professor se configure, no entanto, há o desafio de pôr-se, enquanto docente, em condições de proceder à análise crítica desses saberes da experiência construídos nas práticas, confrontando-os e ampliando-os com base no campo teórico da educação, da pedagogia e do ensino, o que permitiria configurar uma identidade epistemológica decorrente de seus saberes científicos e os de ensinar. (Pimenta e Anastasiou, 2005, p. 88)

Na universidade, portanto, é essencial que o docente consiga refletir criticamente sobre sua ação de ensinar. O processo reflexivo crítico ocorrerá por meio da confrontação entre conhecimentos teóricos sobre educação, ensino superior, pedagogia, didática e a atividade prática, impactando em seu processo de ensinar. Desse modo, o professor necessita estar respaldado por conhecimentos da área pedagógica (por meio da formação inicial e continuada) e ter a oportunidade de discutir sua prática em sala de aula e poder transformá-la (por meio da formação continuada).

Cunha, nos livros O Professor Universitário na Transição de Paradigmas (1ª edição 1998; 2ª edição 2005), Pedagogia Universitária: energias emancipatórias em tempos neoliberais (2006) e Reflexões e Práticas em Pedagogia Universitária (2007),[1] reforça que a universidade precisa de inovação pedagógica e tem lidado com esta problemática. Centrando seus estudos em professores universitários que promovem práticas inovadoras em suas aulas, ela inicia suas discussões (1998; 2005) reconhecendo o surgimento de um novo paradigma, não mais calcado em uma concepção positivista na relação do homem com o conhecimento. Nesta perspectiva, ela insiste na mudança da lógica universitária e na figura do professor como agente motivador desse processo. No entanto, a autora enfatiza que a participação dos alunos é fundamental neste esforço transformador.

A pesquisadora (2006, p. 17) nos apresenta também o termo “atitudes emancipatórias”, o qual indica “um saber fazer que extrapole os processos de reprodução”. Inovar se trata de um esforço de não reproduzir, mas sim de contestar o que já está posto e instituído, focando o “sentido da mudança”. Assim, o docente universitário se qualificaria como inovador a partir do momento que objetivasse uma prática em sala de aula que superasse “as clássicas compreensões de ensinar e aprender”. Ainda em artigo publicado por Cunha no livro Pedagogia Universitária (2009, pp. 211-232), ela amplia essas características vinculadas à inovação, afirmando que, nas práticas inovadoras de docentes universitários pesquisados, foi constatado um intento de superar a maneira tradicional de ensinar e aprender; uma divisão na responsabilidade de condução do processo de ensino-aprendizagem entre professores e alunos; uma problematização da visão moderna de conhecimento, conduzindo a uma “reconfiguração dos saberes”, a qual romperia com algumas dicotomizações (entre elas, “saber científico/saber popular, ciência/cultura, educação/trabalho, teoria/prática, corpo/alma”, etc.); uma nova organização da relação teoria e prática, possibilitando o discente a produzir conhecimento a partir da reflexão sobre sua realidade; e uma mediação, que representaria a ligação do “mundo afetivo e o mundo do conhecimento”, pressupondo uma relação respeitosa entre professores e alunos de modo que houvesse o prazer de aprender.

Outro aspecto importante nas temáticas discutidas na área da pedagogia universitária são as estratégias de ensino. Masetto (2003) e Anastasiou e Alves (2006) se preocupam com estratégias diferenciadas na aula universitária, de tal forma que essas contemplem uma relação do aluno com o conhecimento de maneira interativa, crítica e corresponsável por seu próprio processo de aprendizagem.

Anastasiou (2006), ainda, traz o conceito de lógica dialética no tratamento das estratégias nos processos de ensino-aprendizagem. Neste viés, o ensino seria a construção do conhecimento a partir de princípios de “movimento, contradição”, com uma perspectiva sincrética criada pelo aluno que, em uma leitura/compreensão analítica e sistematizada do problema estudado, caminharia em direção a uma síntese[2]. Esta síntese não traria uma resposta única e finalizada à problemática; pelo contrário, o conhecimento construído, nesta lógica dialética, seria provisório.

Veiga et al (2012, pp. 13-18) desenvolvem pesquisa sobre programas de formação continuada para professores universitários em cinco instituições de ensino superior (IES) (dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Pernambuco), refletindo principalmente sobre “as possibilidades e limites dos programas de desenvolvimento profissional numa perspectiva institucional”. Para realizar o estudo, alguns princípios básicos são defendidos, entre eles, o de que “a existência de um Programa por si só não é suficiente para responder com qualidade à superação das fragilidades da formação pedagógica dos docentes”, que tal formação ocorre na relação entre o processo individual e coletivo no espaço de trabalho, levando a um desenvolvimento profissional em “contextos concretos, relacionando a situação de formação com as práticas de sala de aula”.

Além disso, Veiga et al (2012, p. 17) justificam o estudo por dois motivos: “sinalizar rumos em direção a uma práxis formativa institucional e à criação de uma cultura pedagógica no interior das instituições de educação superior”. Nessa perspectiva, é interessante apontar que as autoras defendem posição muito próxima a nossa, uma vez que identificam na cultura institucional, principalmente com relação às questões pedagógicas.

A pedagogia, assim, é um campo de estudo e, ao mesmo tempo, um campo de atuação na formação pedagógica de professores. Por tratar da temática do ensino superior, define-se como pedagogia universitária, objetiva um movimento de ensino que possibilite a formação de alunos que sejam profissionais com princípios de cidadania, ética e também críticos, investigadores e capazes de se transformar pela interação com o conhecimento obtido na graduação e, a partir dessa transformação, mudar a sociedade almejando horizontes mais democráticos e justos.

Desta forma, a função primeira da pedagogia universitária seria a de motivar processos formativos de identificação com a docência no professor universitário, uma vez que sem a construção desta identidade se torna difícil estabelecer aproximações com temáticas pedagógicas. A construção da identidade docente, por outro lado, não ocorreria somente em formação inicial. Dessa maneira, o campo de atuação da pedagogia universitária se ampliaria para a pós-graduação e nas IES. Na pós-graduação, a preocupação continuaria em formar o pesquisador, mas acrescido ao esforço por se formar um professor universitário. As IES, por sua vez, se voltariam para a formação contínua de seus professores, dando sequência ao processo formativo iniciado na pós-graduação, considerando seu projeto pedagógico institucional, seu currículo, sua realidade e seu contexto. Por fim, ao avaliar a produção docente, a instituição poderia considerar a docência, assim como já considera a pesquisa e a extensão, criando uma cultura da docência.

2.    METODOLOGIA

O desenrolar da pesquisa

Sendo o foco deste artigo compreender como projetos inovadores podem transformar o ensino superior para cumprimento de sua função social e interação com a pedagogia universitária, foi necessário escolher projetos de universidades públicas que possibilitassem tal discussão. Parti da hipótese de que, nesses projetos, a pedagogia universitária deveria ser um fundamento essencial na implementação da proposta uma vez que o currículo mais do que um documento institucional, é vivido e acontece na ação dos sujeitos. Assim, foram selecionadas duas instituições para esse estudo, a UFPR Litoral e a USP Leste, que afirmavam, em seu Projeto Político Pedagógico (PPP) ou em outros documentos e publicações orientadores da prática docente, constituírem propostas inovadoras.

Em contato com as instituições, selecionei três cursos de cada uma delas para eleger coordenadores e professores para participarem da pesquisa. No entanto, os cursos não serão revelados e nem o nome de docentes para preservar o anonimato dos sujeitos participantes. Quando todos os sujeitos aceitaram participar da pesquisa, eles receberam um questionário por email. Em seguida, a entrevista foi agendada e realizada com um roteiro previamente elaborado, no qual foi contemplada a relação da formação pedagógica com a questão da inovação proposta. As entrevistas foram realizadas em 2011 e quando as falas são citadas, utilizei PE (para professor/a entrevistado/a) e números para indicar os diferentes sujeitos. Os sujeitos entrevistados da USP Leste foram enumerados de PE1 a PE6 e, para a UFPR Litoral, de PE7 a PE12.

Quadro 1. Professores participantes da USP Leste

 

Idade dos professores

Titulação

Tempo de magistério

Tempo de magistério no ensino superior

Não mencionada

Pós-doutor

12 anos

12 anos

38

Doutor

10 anos

10 anos

59

Doutor

13 anos

13 anos

35

Doutor

12 anos

12 anos

38

Doutor

15 anos

15 anos

36

Doutor

5 anos

5 anos

 

Quadro 2. Professores participantes da UFPR Litoral

Idade dos professores

Titulação

Tempo de magistério

Tempo de magistério no ensino superior

30

Doutorando

7

7

32

Mestre

3

3

38

Doutor

13

5

40

Doutor

6

6

47

Doutor

25

17

56

Mestrando

22

22

 

Em resumo, os instrumentos utilizados foram: a análise de documentos como, por exemplo, o PPP da instituição[3] e as entrevistas com os sujeitos participantes. Alguns dos sujeitos participantes (professores e coordenadores) responderam também a um questionário.

Além disso, quando fui às universidades para realizar as entrevistas, pude observar os espaços de trabalho e, na sequência, avaliar se alguns desses espaços favoreciam a implementação da inovação.

Para analisar as informações presentes nas respostas ao questionário e à entrevista, considerei critérios/categorias que revelariam a inovação presente no projeto. Nesta perspectiva, um projeto seria inovador[4] quando, do ponto de vista da didática, se propõe a redefinir a relação com o saber e, por isso, pensa o currículo no eixo da interdisciplinaridade e/ou transdisciplinaridade, com vivências extracurriculares para os estudantes. E essa relação visa uma aprendizagem pautada na perspectiva da construção dos sujeitos e da construção do conhecimento em seu vínculo com as transformações sociais. E será inovador também quando rompe as barreiras entre saber científico/popular, ciência/cultura, teoria/prática; quando busca um questionamento de questões referentes à vida e ao ser humano levando em consideração ideais democráticos; quando a construção da ciência está pensada dentro de valores éticos e morais; e quando a formação do graduando não é encarada como acabada no período delimitado pela graduação. Além disso, o projeto é inovador quando estabelece formas de concretização do mesmo, apresentando indícios de planejamento para a atuação dos professores como, por exemplo, a organização de espaços para a discussão do PPP da instituição, do PPP de curso e da elaboração de práticas docentes que permitam o projeto ser vivenciado na sala de aula e em todos os espaços dessa universidade que é nova, mas que ainda não se configurou como inovadora.

A inovação, dessa maneira, está relacionada diretamente ao modo de organização curricular do conhecimento, ao modo de conceber a relação do graduando com o conhecimento e sua atuação futura na sociedade e à metodologia de ensino defendida no PPP para dar conta dos processos inovadores de lidar com o conhecimento. Essa metodologia, ainda, além de explicitada no PPP precisa ser pensada em como ser efetivada na prática. Assim, é esperado que os projetos também tragam algum tipo de discussão sobre como auxiliar professores, funcionários e alunos na concretização da proposta inovadora.

3.    RESULTADOS

Analisando as propostas de inovação

Antes de tratarmos da análise em específico, é importante apresentar resumidamente a proposta inovadora das duas universidades: UFPR Litoral e USP Leste.

A Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) (também conhecida por USP Leste) é uma das unidades de Ensino e Pesquisa da USP. Sua inauguração ocorreu em 2005 Rollemberg (2005, p. 17) afirma que “a Universidade de São Paulo soube reinventar-se ao inaugurar seu campus na Zona Leste da cidade de São Paulo”. No que se refere à inovação, o autor cita a criação de dez novos cursos, sendo alguns deles inéditos em relação a outras IES. Além de inovar na escolha dos cursos, a USP Leste instituiu o Ciclo Básico (CB), o qual atende a todos os alunos (dos dez cursos) no primeiro ano e que, segundo Arantes (2005),

(...) foi idealizado para promover a iniciação acadêmica dos estudantes em propostas interdisciplinares, voltadas para a realidade da sociedade e da região em que a nova Unidade está inserida. (...) Nessa perspectiva, busca-se o desenvolvimento de estudos coletivos, articulando conteúdos de várias áreas do conhecimento, e espera-se promover a integração entre os diferentes cursos, estimulando os trabalhos em grupos. (pp. 101-102)

Para o desenvolvimento de estudos coletivos focando a realidade da sociedade, a partir do trabalho em grupos, recorreu-se à abordagem de resolução de problemas, principalmente na disciplina denominada Resolução de Problemas (RP), obrigatória para todos os alunos no CB.

A UFPR Litoral, por sua vez, também foi fundada em 2005. O PPP, no entanto, foi aprovado em junho de 2008. A história da UFPR Litoral está relacionada à história do Paraná e à da fundação da universidade no estado (1912), pois a Universidade do Paraná “nasceu com o intuito de interferir na realidade concreta de seu Estado” (PPP UFPR Litoral, 2008, p. 1).

A proposta inovadora da UFPR Litoral contempla ações emancipatórias com proposição de princípios para o trabalho pedagógico. Para atingir tais princípios, a universidade se insere na realidade do litoral paranaense e do Vale do Ribeira, promovendo projetos com as comunidades. A perspectiva de projetos planeja e executa atividades acadêmicas almejando a formação de profissionais com responsabilidade social. A aproximação e interação entre a academia e a comunidade litorânea preveem uma contribuição para o desenvolvimento científico, econômico, ecológico e cultural da região, numa direção sustentável.

Tendo apresentado as duas universidades, vamos à análise. Primeiramente, foi possível constatar que a pedagogia universitária ainda não aparece como uma proposta bem definida para organizar a formação docente voltados à concretização da inovação. Ou seja, ambos os projetos concebem a importância da figura do professor no processo, mas não estabeleceram um processo formativo continuado. Assim, a depender da época ou da ação em desenvolvimento, o docente poderá ou nao participar de ações formativas voltadas à implantação da proposta:

Docentes que entraram em 2005, eles tiveram outro cenário. Inclusive, outros tipos de reunião. Então, isso pode interferir. (...) Então, o envolvimento, o treinamento, a capacitação, sei lá qual é a palavra mais adequada, a promoção de um espaço de reflexão era sempre de forma muito pontual, ou por reuniões de planejamento do semestre, ou por uma ou outra reunião de discussão sobre o conceito, e por algumas reuniões, sempre uma semestral, de avaliação. Então, era sempre assim, nunca houve um programa de aperfeiçoamento, um programa de mergulho do docente no tema, nunca houve. Então, havia um plano elaborado, as diretrizes gerais que deveriam ser seguidas, não havia e nunca houve de forma objetiva, uma regulamentação específica, eu não estou dizendo de regras, de critérios específicos que deveriam conduzir (...). Eu entrei (...) e já peguei uma RP na sexta-feira à noite (...). E sexta-feira à noite é o prêmio de docentes novos. (...) eu não tinha a menor ideia. Então, eu entendi que eu também estava aprendendo a fazer fazendo. Mas o que eu não acho adequado, absolutamente. (PE2)

Boa pergunta. Essa é uma excelente pergunta. Até pra eu me fazer o tempo todo: “Onde é que eu vou buscar ajuda quando eu acho que não está muito bem a coisa?” Eu acho que nas conversas com os colegas é que a gente consegue resolver mais imediatamente. Bom, eu acho que não me deparei com uma grande dificuldade, mas acho que na troca de experiências mesmo por enquanto. (PE7)

Por outro lado, a tensão causada pelo paradigma da inovação no eixo do ensino é tratada de maneira diversa nas instituições e essa diversidade explicita que não há uma fórmula única para se explorar a pedagogia universitária no contexto inovador. Entendo essa diversidade como algo positivo na análise dos projetos e como uma contribuição significativa para a área da pedagogia universitária, pois ambas as universidades, ainda que eu identifique necessidade de aprimoramento, estão tratando da formação pedagógica de seus docentes em relação com a proposta pedagógica, fato incomum na história do ensino superior brasileiro.

Sim. Eu tive, eu participei de várias, dois ou três, mais o congresso. E aí tinha um livro da própria EACH de como se conduziria. Havia uma coordenação específica, na época da professora Valéria, do Ciclo Básico, suporte o tempo todo, tinha até um funcionário na Escola, que era como se fosse o secretário do Ciclo Básico. Na época, tinha alguém para ficar administrando os banners, as salas, era bem fashion. Aí depois que a gente vai pegando o ritmo, isso vai se diluindo. (PE1)

Eu entendo que todo espaço dessa universidade é um espaço formativo. (...) Então, esse é o papel um pouco meu enquanto coordenador, estimular sempre a participação dos professores nas construções coletivas do currículo, dos módulos de aprendizagem, dos eventos que o curso participa. Não como um espaço único que eu diga, esse é um espaço formativo, todos eles são espaços formativos. (...) (PE8)

Como já anunciado, UFPR Litoral e USP Leste não apresentam, de maneira explícita em seus projetos ou documentos que orientam a prática docente, uma proposição para os processos formativos de seus docentes para contemplar a concretização do projeto inovador. Por outro lado, foi possível apreender na análise, que cada uma dessas universidades revela estratégias e traça caminhos para estabelecer uma relação do proposto com o concretizado. A seguir, discutirei como essas duas universidades trabalham a pedagogia universitária e como tal trabalho pode ser bem sucedido ou falho no estabelecimento de uma cultura da docência e, consequentemente, na construção de uma identidade docente.

Considero a UFPR Litoral uma instituição estratégica em termos de pedagogia universitária. Essa característica estratégica se revela desde o início de sua implantação, com a contratação dos professores. Ainda que fosse uma instituição federal, não temeu abrir seus editais para docentes que não tivessem o título de doutor e, na verdade, se utilizou desse recurso para estabelecer um vínculo maior desses professores (não doutores) com a instituição e para que eles, em processo de mestrado ou doutorado, pudessem tratar da realidade da UFPR Litoral e de seus estudos desenvolvidos ali.

Uma coisa boa que tem acontecido aqui dentro é a formação desses professores do doutorado, porque a matriz inicial aqui foi formada assim: 25% sem mestrado, 50% com mestrado e 25% com doutorado, pra permitir que esses professores que entraram, pudessem fazer seus doutorados produzindo conhecimento a partir do litoral. Então, é isso que está acontecendo mesmo, todos os temas dos doutorados que estão aparecendo agora vêm a partir de temas que estão vinculados ao litoral do Paraná, ao Vale do Ribeira, etc. Nossa! Isso está trazendo um aporte intelectual fortíssimo aqui dentro. (PE8)

Além disso, o próprio espaço que os professores frequentam no Setor Litoral favorece processos formativos. Há os espaços formais (Câmaras dos Cursos e Conselho Diretivo) e os informais (sala dos professores). A partir da análise, é possível verificar que esses espaços promovem discussões que focam questões relacionadas aos processos de ensino, como colocar o projeto em prática, e às temáticas abordadas pela pedagogia universitária, contribuindo para a construção da identidade docente dos professores e para a inovação.

Nós temos muitas pessoas de formação diferente convivendo juntas o tempo todo. (...) Eu tenho contato, por estar no mesmo espaço físico, com colegas do curso de saúde coletiva. A gente conversa sobre isso, fala sobre gestão esportiva e do lazer. Então, eu acho que isso é muito positivo porque, no nosso modelo tradicional, cada um está numa ilha. Eu estou na ilha das ciências, o outro está na ilha do desporto, o outro está na ilha do turismo e não temos, assim, essa sinergia tão concreta. (PE9)

Eu entendo que todo espaço dessa universidade é um espaço formativo. (...) Então, esse é o papel um pouco meu enquanto coordenador, estimular sempre a participação dos professores nas construções coletivas do currículo, dos módulos de aprendizagem, dos eventos que o curso participa. Não como um espaço único que eu diga, esse é um espaço formativo, todos eles são espaços formativos. (...) Isso é um exercício que não é email que faz, não é convite ou reunião que faz, é na conversa, é no diálogo, é conversando, etc., ou seja, é um investimento energético violentíssimo. (...) E eu sou uma pessoa que acredita que os acordos se fazem nas relações, não é no papel escrito, não é no email mandado, é nisso que é o exercício diário aqui dentro; não é exercício de gabinete, que pode ser o de gabinete também, desde que eu abra na porta, entre e converse. O gasto energético é muito grande, talvez a gente tenha encontrado um formato de universidade que seja o de menor gasto energético possível. (...) ouço até alguns professores falando isso; a gente já tem um modelo de universidade que funciona há centenas de anos porque se encontrou uma forma de menor gasto energético pras coisas. Esse é um projeto em que o investimento energético é violentíssimo, violentíssimo. E você precisa estar preparado e com a cabeça pra isso, senão você não desenvolve. Então, de novo, espaço formativo dentro do curso? O tempo todo. (PE8)

Dessa maneira, se pode afirmar que há um esforço institucional para a pedagogia universitária estar presente e que todos participem, isto é, o fenômeno ensino e a proposta inovadora são tratados constantemente e coletivamente. A UFPR Litoral se organizou de forma tal que o professor universitário não tem como escapar às discussões pedagógicas e à inovação proposta. Nesse sentido, existe uma cultura instaurada que privilegia as relações pedagógicas de modo a construir identidades que focam a docência, os processos de ensino-aprendizagem e a concretização da inovação proposta.

Ainda, destaco que a UFPR Litoral, por promover um projeto inovador, escolheu caminhos para o percurso de seus docentes que, a princípio, parecem se distanciar da UFPR; quero dizer que, no Setor Litoral, os professores sofrem menos pressão para produzir pesquisa intensamente e, por suas falas, posso concluir que suas ações na docência são mais valorizadas. Os professores são motivados a produzir pesquisa sim, mas esta pesquisa não deve estar desvinculada das ações extensionistas e do que esses professores estão tratando nos processos de ensino. Avalio que, de maneira geral, os professores da UFPR Litoral têm mais flexibilidade e oportunidade para se dedicar a questões relativas à docência, como nos explica PE9:

Porque do modelo tradicional de universidade o que a gente tem? A gente tem o ensino, centrado nas disciplinas, na sala de aula, e a pesquisa. Todo mundo quer fazer pesquisa, quer ser o cientista, quer publicar artigos. E você vem pra cá e o foco não é esse. (...) Então, é importante que a pessoa tenha esse perfil de querer fazer trabalhos um pouco mais direcionados para essa parte de extensão. E claro, isso, como nós todos temos um ego grande, professor sempre tem um ego grande, não são todos que vão gerar grandes publicações, que você vai ter uma visibilidade enquanto um cientista, um professor renomado. Então, você tem que estar bem consciente disso, consciente de que é uma caminhada diferente. A extensão, no Brasil, está sendo vista também de uma maneira, já está crescendo, não é tão segunda classe. (...) Esse é o grande desafio. Não ficar só no pedaço, ou seja, vamos fazer extensão. Não. Mas que todo o processo de ensino tenha um olhar com a extensão. O que quer dizer isso? Que o aluno que está fazendo algum módulo específico ou disciplina, aqui a gente chama de módulo, que ele possa conectar isso; que o professor que está mediando esse processo, possa conectar isso com uma realidade, seja na gestão ambiental, seja no turismo, seja no curso de ciência, que aí já tem um olhar mais da licenciatura, do estágio que ele está fazendo, daqueles jovens que vivem naquela comunidade. E a pesquisa passa por isso aí. A pesquisa já vem com um caráter um pouco diferente, uma perspectiva de olhar a região. Por exemplo, (...) eu não vou ficar estudando o elétron, eu vou estudar um problema realmente concreto aqui. (...) Então, aqui, eu tenho que olhar essa região: que tipo de óleos essenciais eu posso extrair daqui? Que tipo de plantas realmente tem um potencial para se tornar um fitoterápico? (...) Tentar fazer esse tripé, realmente caminhar junto e não um androide, uma coisa, uma perna maior do que a outra. (PE9)

É importante ressaltar que focar o ensino não significa desprezar os eixos da extensão e da pesquisa. Defendo que o foco no ensino precisa ocorrer em sua relação com a extensão e a pesquisa. A UFPR Litoral, conforme análise, está conseguindo estabelecer uma relação ensino/extensão mais intensa do que a relação ensino/pesquisa, ou ainda, ensino/extensão/pesquisa. E esse é um desafio lançado aqui a essa instituição: como continuar focando o ensino e promovendo a preocupação e reflexão de seus professores universitários sobre os processos de ensino-aprendizagem de modo a conseguir estabelecer uma relação equilibrada com os eixos da extensão e pesquisa e, ainda, colocando as propostas de inovação em prática?

Por sua vez, a USP Leste encontra meios de tratar a formação pedagógica de seus professores e abordar temáticas referentes ao ensino e, de certa maneira, está buscando colocar as proposições inovadoras no plano concreto. Os espaços formativos para os professores são o Grupo de Apoio Pedagógico (GAP), as Comissões de Coordenação de Curso (CoCs), a Comissão de Graduação (CG) e o curso Pedagogia Universitária. Tais espaços não diferem da realidade de outras unidades da USP, ou seja, não foram criados para lidar com a inovação, mas podem auxiliar na relação teoria/prática, pois podem se adequar à proposta inovadora. Por exemplo, existe uma CoC CB, que trata de uma realidade específica do contexto USP Leste. Ainda que haja espaços formativos para os professores tratarem de questões relacionadas à docência e aos processos de ensino-aprendizagem, tais espaços não constituem uma estrutura em que todos os professores são contemplados ou que os motive à participação. O GAP, por exemplo, é mais um apoio ao professor, inclusive o próprio nome do grupo já indica isso. E a CoC, por sua vez, é formada por alguns professores do curso. Além disso, tanto o GAP quanto as CoCs acabam lidando com muitos assuntos burocráticos da universidade, o que os leva a uma falta de foco para as urgências pedagógicas.

Pelo fato de a estrutura não ser departamental, grande parte das demandas administrativas recaem sobre o coordenador do curso. E aí, ele é o presidente da CoC. Então, isso tudo flui pra CoC e a CoC tem que decidir. Então, o coordenador é o gestor do curso; o órgão decisório é a CoC. Então, tudo flui ali, tanto os problemas administrativos quanto os pedagógicos. Agora, a demanda administrativa (...), isso gera uma avalanche. No serviço público, tudo gera processo, tem que ter parecer. Tem uma demanda de trabalho que compete com o trabalho pedagógico. Então a CoC, muitas vezes, tem grande parte do seu tempo consumido por questões administrativas. E o pedagógico acaba ficando em segundo plano. (PE5)

No que se refere ao curso Pedagogia Universitária, as temáticas concernentes à pedagogia no ensino superior são discutidas e os professores entrevistados, que tiveram a oportunidade de participar ou que conhecem professores que participaram, sempre fizeram comentários positivos sobre o curso e sobre a necessidade de um curso como este na USP. No entanto, assim como o GAP e a CoC, não abarca todos os professores da USP Leste e, além disso, não trata especificamente das propostas inovadoras dessa unidade.

Assim, no contexto USP Leste, não há uma cultura em que a docência se torna pauta constante e que abranja o coletivo. Essa realidade indica que a cultura da docência, na concepção aqui assumida, não está totalmente instaurada e, em até certo ponto, não se garante como foco principal da instituição. Como a construção da identidade docente está relacionada com a cultura da docência, entendo que a USP Leste pode evoluir em termos de organização de uma cultura que possibilite aos professores se voltar mais a questões pedagógicas. Insisto, novamente, que a pesquisa é importante, mas quando se distancia das temáticas do ensino, deixa de contribuir para a constituição da identidade docente. Dessa forma, a USP Leste necessita atentar para a busca do equilíbrio entre ensino e pesquisa de modo a contemplar a inovação proposta.

Justamente por pender a balança mais para o lado da pesquisa, compreendo que as problemáticas elencadas pelos professores da USP Leste com relação às dificuldades no CB, na disciplina de RP e no trabalho com a interdisciplinaridade nos cursos, acabam por ocorrer. Nesse sentido, o relato de um dos entrevistados é revelador:

Por exemplo, RP, chama-se resolução de problemas. No dia em que eu fui escalado para começar o trabalho oficialmente na EACH, ou no segundo dia, eu peguei a disciplina que eu já sabia o conteúdo, tinha visto no concurso. (...) Eu recebi um livro desse tamanho aqui, tipo esse aqui da FAPESP, mas da própria USP, mas isso no primeiro dia, não houve uma palestra, o que é RP, como é o Ciclo Básico, por que o Ciclo Básico, qual é a nossa proposta. Não, você é professor da USP, você passou num concurso específico, você sabe tudo, a premissa foi essa. Eu não sabia o que significava a sigla RP, podia ser rádio pirata. E eu perguntei para os colegas: “Cara, no primeiro dia de aula, você junta as turmas e, com mais quatro professores, toma conta de sessenta alunos”. Aí eu entrei e “O que a gente vai fazer aqui?” “Você não conhece, professor? Você é novo aqui?” Ele sabe que eu sou novo, porque não são tantos. Eu falei “Sim”. “Você vai ter uma grande surpresa”. Eles estavam me sacaneando (...). Com os anos, eu fui vendo onde eu tinha amarrado meu burro. Eu não digo que, hoje, seja assim, mas ninguém convocou uma reunião para explicar como era a proposta, a própria EACH. (PE3)

Considero que a instalação de uma nova unidade USP seja muito trabalhosa, sendo esta unidade portadora de uma proposta inovadora, então o “trabalhoso” se intensifica. E essa intensificação acontece, primordialmente, porque a inovação acaba por demandar um aporte e suporte pedagógicos muito grandes, os quais as universidades brasileiras não estão acostumadas a oferecer e a organizar. Assim, pelos dados evidenciados, percebe-se que a USP Leste está buscando caminhos de inovação, mas que também necessita de apoio para implementar sua proposta que se apresenta como inovadora no âmbito da USP. 

De maneira geral, o apoio precisa chegar aos professores, pois eles necessitam de uma estrutura que discuta constantemente as concepções pedagógicas da inovação e, nesse sentido, o CB, a disciplina de RP e a interdisciplinaridade merecem atenção especial. Ademais de uma estrutura que garanta um trabalho com aspectos pedagógicos e a construção da identidade docente, se torna fundamental a valorização do eixo do ensino na avaliação institucional desses professores, isto é, que eles sejam também avaliados pela sua dedicação ao ensino e não somente à pesquisa.

A gente está sendo, bianualmente, avaliado em cima de aspectos muito rígidos, que são: produção em termos de artigos, produção em termos de pesquisa e extensão, número de aulas, etc. Quando você vê que inovar vai tirar tempo das outras coisas, você sabe que você já vai ter um comprometimento de avaliação, você está colocando sua posição em risco. Então, tem também um lado de coragem muito grande. Você tem que pôr ali um desprendimento pra dizer: “Então, vamos encarar porque vai dar certo”. Mas não é das coisas mais tranquilas. Inclusive, hoje, se discute essa questão da avaliação porque, embora conste lá do roteiro de avaliação, que devemos nos dedicar à pesquisa e extensão, a gente sabe que existe um olhar muito mais dirigido pra produção em pesquisa. Então, acaba que nossa dedicação à extensão e ao ensino fica um pouco prejudicada por causa disso. (PE6)

Então esse quadro de trabalho desmedido e excessivo (pesquisa, ensino, extensão e administração), hoje da carreira universitária, penso que impede o próprio exercício de pedagogias universitárias inovadoras, sabe? É uma roupa que não serve mais no corpo que temos e queremos formar. Como exercitarmos interdisciplinaridade se a estrutura, por exemplo, de pesquisa, é disciplinar? Eu me pego muito tempo, em cinco anos de USP, em reuniões que não chegam a lugar nenhum; fazendo 300 mil relatórios, que eu acho que ninguém lê. Então, eu acho que é um conjunto de exigências, formas de pensamento, estruturas de poder, estilos de formação de recursos humanos, que não cabem mais quando desejamos novas pedagogias. Fica esquizofrênico. Eu tenho essa impressão. Eu acho que a EACH ainda encontra-se nessa contradição. (PE4)

Por fim, é importante reconhecer a USP Leste como um campo frutífero de inovação para o ensino superior brasileiro. Segundo Pereira (2007, p. 82), por ser focado no modelo francês, o ensino superior no Brasil impediu o fortalecimento de “uma formação universitária voltada para uma formação geral”. No que consistiria tal formação geral? Ela compreenderia, ainda conforme Pereira (2007, p. 78):

(...) uma forte capacidade de análise; domínio das habilidades de pesquisa; conhecimento básico do mundo natural e social e do significado da cultura humana numa visão multicultural; capacidade de solucionar problemas de forma cooperativa; desenvolvimento da responsabilidade cívica, social e pessoal e habilidade para transferir conhecimento de um para outro cenário.

Pela descrição de Pereira, é possível traçar um paralelo com a proposta do Ciclo Básico da USP Leste. No entanto, como analisado, o Ciclo Básico enfrenta problemas e necessita de apoio institucional, principalmente em termos de formação pedagógica para que os professores possam lidar com a proposta e discuti-la de modo a amadurecer as ações e torná-las coesas.

Ainda segundo Pereira (2007, p. 83), na história da universidade brasileira, houve algumas universidades, USP, UDF e UnB, que buscaram “formar o indivíduo e não o profissional”, mas o modelo napoleônico prevaleceu sobre os princípios formativos lançados por essas IES. Assim, arriscamos dizer que a USP Leste seria, senão a primeira, uma das primeiras IES a instituir um Ciclo Básico preocupado com a formação do indivíduo em relação com seu futuro campo profissional de maneira crítica, ética e responsável. Portanto, ressaltamos que essa proposta precisa ser valorizada e, nesse sentido, torna-se ainda mais urgente que a USP, como instituição renomada no Brasil e mundialmente, reconheça na USP Leste não somente a expansão de vagas no ensino superior, mas uma possibilidade de transformação necessária para esse ensino e que esse reconhecimento venha com o apoio necessário para que a semente da inovação, já plantada, vingue.

4.    A TÍTULO DE CONCLUSÕES

Enfim, pode a pedagogia universitária ajudar a inovar?

            A pedagogia universitária está se fortalecendo como campo teórico na área da Educação desde finais dos anos 90 do século passado e suas pesquisas estão auxiliando num repensar da universidade e do papel do professor universitário neste espaço. Nesse sentido, a inovação das teorias e das práticas acaba sendo inevitável.

No entanto, esta inovação precisa ser discutida (mais profundamente) em termos do que esperamos por inovação, de quanto estamos inovando e de como esta inovação pode representar uma transformação do ensino universitário de modo significativo para o contexto atual brasileiro. O que podemos concluir, a partir deste estudo, é que há um intento de inovação em universidades que podem ser consideradas centrais no Brasil, mas este esforço por inovar ainda precisa ser reconhecido, fortalecido e debatido constantemente dentro e fora dessas instituições, pois uma vez que se “relaxa” a respeito do projeto que se estabeleceu para inovar, há uma grande chance de se voltar a fazer mais do mesmo.

A pedagogia universitária, ainda, na medida em que pode auxiliar na promoção de práticas inovadoras, acaba colaborando para um repensar de várias questões, entre elas, a expansão da universidade com qualidade no ensino, a relação entre ensino, pesquisa e extensão, sendo esses três eixos igualmente importantes no contexto universitário e, que, principalmente, as universidades se proponham a uma institucionalização da cultura da docência, pois, sem ela, a construção da identidade docente corre riscos. E o que será da aprendizagem de nossos graduandos em universidades nas quais os professores não precisam se esmerar em ser docentes?

Assim, espero que os resultados desta pesquisa, brevemente divulgados neste artigo, possam servir para um começo de práticas mais preocupadas com o foco na docência em sua relação com a extensão e a pesquisa e, consequentemente, com o estabelecimento de culturas da docência no âmbito universitário. Que possam servir para que as políticas públicas com relação à expansão do ensino superior brasileiro levem em consideração não só as estatísticas e o apelo quantitativo de aumento de vagas, mas também as discussões da área da pedagogia universitária, que já há um tempo considerável denunciam o descaso com a formação pedagógica dos professores e o ensino.

 

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Zabalza, M.A. (2004). O ensino universitário: Seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed.

 

 

 

 

 


Cómo citar en APA:

Couto, L.P. (2021). Pode a pedagogia universitária ajudar a inovar? A pedagogia universitária nas propostas inovadoras de universidades brasileiras. Revista Educación Superior y Sociedad, 33(2), 637-660.

 

 

 

 



[1] No caso dos dois últimos livros, Cunha foi a organizadora.

[2] Ainda segundo Anastasiou (2005, p. 63), a síncrese seria “a visão inicial, não elaborada e, às vezes, caótica” e a síntese, “a conclusão efetiva no pensamento e pelo pensamento do estudante”.

[3] No caso da USP Leste, como não há um PPP publicado, me pautei nas informações contidas no livro organizado por Celso B. Gomes, USP Leste: A expansão da universidade do oeste para o leste (2005).

[4] Para estabelecer uma definição para projeto inovador, me baseei em Cunha et al (2006, p. 63-64), Leite e al (2003), Zabalza (2004) e Broilo, Pedroso e Fraga (2006).