REVISTA EDUCACIÓN SUPERIOR Y SOCIEDAD
2021, VOL. 33 Nº 2, 377-401
https://doi.org/10.54674/ess.v33i2.427
e-ISSN: 26107759
Ensino remoto e formação continuada em serviço na pós-graduação stricto sensu
Fabrício Dias de Andrade* @
Dorotea Frank Kersch* @
*Universidade do Vale do Rio do Sinos, Brasil
Resumo: No ensino de todos os níveis, a pandemia de COVID-19 se tornou um divisor de águas entre o que se pensava e como se atuava antes dela, e o que se seguiu ao seu surgimento. Acompanhamos, desde 2018, uma formação continuada em serviço para professores da pós-graduação stricto sensu. Essa formação objetiva habilitar os professores à concepção de desenhos de cursos híbridos e multimodais que levem em consideração a presença das tecnologias digitais. Neste artigo, acompanhamos a trajetória de Marina, uma engenheira que integra esse grupo de formação. Nosso objetivo é discutir as aprendizagens que a participante revela ter construído desde o início de sua participação na proposta formativa e refletir sobre a necessidade da concepção de cursos de formação continuada que proponham possibilidades de apropriação das tecnologias digitais também para professores do stricto sensu. O isolamento a que fomos submetidos devido à pandemia nos revela a necessidade da existência e criação de espaços de aprendizagem e colaboração no local de trabalho do professor, a exemplo das comunidades de prática, que permitam a troca de aprendizagens entre os pares a partir da experienciação e apropriação das tecnologias digitais no e para o local de trabalho. É nesses espaços que eles se ressignificam e desenvolvem agência.
Palavras-chave: Ensino remoto; COVID-19; Formação continuada; Stricto sensu.
Remote teaching and continuous in-service training in graduate programs
Abstract: The COVID-19 pandemic has changed the way we thought and acted in the field of teaching at all levels. Since 2018, we have followed up continuous in-service training for graduate teachers in action. This training aims to enable teachers to design hybrid and multimodal courses that take into account the presence of digital technologies. In this article, we follow the trajectory of Marina, an engineer who is part of this training group. Our objective is to discuss the learning that the participant reveals to have built since the beginning of her participation in the training and to reflect on the need for the design of continuous training courses that propose possibilities of appropriation of digital technologies also addressed to teachers. The isolation to which we were subjected due to the pandemic reveals the need for the existence and creation of spaces for learning and collaboration in the teacher's workplace, like the communities of practice, that allow the exchange of learning between peers from the experience and appropriation of digital technologies in and for the workplace. It is in these spaces that they resignify themselves and develop abilities.
Keywords: Remote teaching; COVID-19; Continuing training for graduate professors.
Educación a distancia y formación continua del profesorado de posgrado
Resumen: La pandemia de la COVID-19 cambió la manera de pensar y de actuar, en materia educación en todos los niveles formativos. Acompañamos, desde 2018, una formación continua del profesorado de posgrado stricto sensu. Esa formación busca habilitar profesores en la concepción de diseños de cursos híbridos y multimodales que consideren la presencia de las tecnologías digitales. En este artículo, acompañamos la trayectoria de Marina, una ingeniera que integra ese grupo de formación. Nuestro objetivo es discutir los aprendizajes que la participante revela haber construido desde el inicio de su participación en la propuesta formativa y reflexionar sobre la necesidad de la concepción de cursos de formación continua para profesores que propongan posibilidades de apropiación de las tecnologías digitales. El aislamiento al que fuimos sometidos debido a la pandemia reveló la necesidad de existencia y creación de espacios de aprendizaje y colaboración en el lugar de trabajo del profesor, como es el caso de las comunidades de práctica, que permiten el intercambio de aprendizajes entre pares a partir de la experienciación y apropiación de las tecnologías en el y para el lugar de trabajo. Es en estos espacios que los profesores se resignifican y desarrollan habilidades.
Palabras-clave: Enseñanza remota; COVID-19; Formación continua del profesorado de posgrado.
Enseignement à distance et formation continue pour les enseignants de troisième cycle
Résumé: La pandémie de COVID-19 a changé la manière de penser et d'agir en matière d'enseignement à tous les niveaux. Depuis 2018, nous suivons une formation continue pour les enseignants de troisième cycle stricto sensu. Cette formation vise à permettre aux enseignants de concevoir des cours hybrides et multimodaux qui prennent en compte la présence des technologies numériques. Dans cet article, nous suivons la trajectoire de Marina, une ingénieure qui fait partie de ce groupe de formation. Notre objectif est de discuter les apprentissages que la participante révèle avoir construits depuis le début de sa participation à la proposition formative et de réfléchir à la nécessité de concevoir, pour les enseignants, des cours de formation continue qui proposent des possibilités d'appropriation des technologies numériques. L'isolement auquel nous avons été soumis en fonction de la pandémie nous révèle la nécessité créer d'espaces d'apprentissage et de collaboration dans le lieu de travail de l'enseignant, à l'image des communautés de pratique qui permettent l'échange d'apprentissages entre à travers l'expérimentation et l'appropriation des technologies numériques dans et pour le lieu de travail. C'est dans ces espaces qu'ils resignifient et développent leurs capacités.
Mots-clés: Enseignement à distance; COVID-19; Formation continue pour les enseignants de troisième cycle.
1. INTRODUÇÃO
Dezessete de março de 2020. Esse dia e os que se seguiram a ele nunca serão esquecidos pelos professores das instituições de ensino de todos os níveis do Rio Grande do Sul - Brasil, porque, em função do avanço da pandemia da COVID-19 sobre o estado, foi necessário atender às medidas de distanciamento social controlado[1] indicadas pela Organização Mundial da Saúde - conduzidas em território brasileiro pelo Ministério da Saúde - e passar a oferta das aulas da modalidade presencial física à emergencial remota[2]. No entanto, tal situação causou contrastes entre os sistemas de ensino, pois nem todas as instituições, principalmente as públicas, conseguiram tão prontamente voltar às aulas.
Para a maioria dos professores, a situação da pandemia fez com que saíssem de suas zonas de conforto: foi necessário, mais do que nunca, que se apropriassem das tecnologias digitais – doravante TDs. Mas, para a instituição onde esta pesquisa se desenvolve, uma universidade comunitária da região sul do país, estava claro, antes mesmo do surgimento da pandemia, que era necessário preparar os professores para a universidade (e a escola) do futuro. Por essa razão, com o intuito de inserir os professores do stricto sensu na cultura híbrida e multimodal[3] que caracteriza a sociedade atual, desde 2018 vinha sendo ofertado um curso de formação continuada, intitulado “Concepção e Desenho de Curso na Cultura Híbrida e Multimodal”, que tinha como público-alvo coordenadores e professores-pesquisadores dos programas de pós-graduação, de modo que pudessem viver diferentes experiências de apropriação de TDs nos processos de ensino e de aprendizagem nos espaços em que atuam.
Essas experiências vividas, com a chegada da pandemia, passaram a ser especialmente importantes quando os professores tiveram de migrar da modalidade de ensino do presencial físico para o emergencial remoto. Dessa forma, com o objetivo de elucidar essas aprendizagens, através da voz de Marina, uma participante do curso, apontaremos algumas de suas reflexões pessoais desde a sua inserção no curso de formação continuada até o momento em que, durante a pandemia, as aulas passaram a ser desenvolvidas na modalidade emergencial remota.
Neste texto, que trata de uma parte do percurso dessa formação, temos como objetivo discutir as aprendizagens que Marina revela ter adquirido desde sua inserção na proposta formativa, a fim de que possamos destacar a necessidade de ser pensada uma formação continuada em serviço também para os professores do nível mais alto da formação acadêmica - os da pós-graduação stricto sensu -, uma vez que o mundo analógico em que se graduaram mudou significativamente e, também, pelos espaços formativos se preocuparem, em grande parte, com a formação dos docentes da graduação, ficando a pós-graduação em segundo plano, sendo nela também imprescindíveis novos olhares e direcionamentos pedagógicos.
Por uma formação continuada em serviço na pós-graduação stricto sensu
O ano de 2020 foi atípico no setor educativo mundial. A pandemia da COVID-19 evidenciou, incontestavelmente, a necessidade do uso das TDs para a condução das aulas em todos os espaços educativos. Entretanto, antes mesmo do surgimento da pandemia, as exigências do mercado educacional já exigiam cada vez mais profissionais que tivessem se apropriado de diferentes recursos tecnológicos e metodológicos em sala de aula - e esperava-se que, com o passar do tempo, soubessem/pudessem também utilizá-los. A pandemia acelerou incomensuravelmente esse processo, exigindo novos movimentos de transformação pedagógica e metodológica que engloba os diferentes sujeitos envolvidos, entre eles, as instituições de ensino, que, em seu papel de formadoras, precisam auxiliar seus profissionais com capacitação adequada para o desenvolvimento de suas mais variadas atividades.
O aumento da globalização e a crescente demanda das TDs em todos os espaços interativos têm impactado cada vez mais a vida cotidiana. No entanto, a preocupação em adaptar-se a esse novo ethos que se constituiu em nossa sociedade não é de hoje. Desde a década de 1990, um grupo de pesquisadores[4] trouxe à tona a necessidade de se (re)pensar os letramentos (não mais no singular, como algo homogêneo, mas sim plural, heterogêneo) necessários para a vida plena em sociedade. Com o avanço das TDs nos diferentes espaços sociais e o acesso que temos a elas, a compreensão do mundo não está mais condicionada a apenas ler o que dizem as letras, o que está no papel escrito; tampouco, à decodificação de palavras soltas, sem relação alguma com outros elementos que também passaram a compor os enunciados: é preciso olhar o todo e compreender as diversas formas em que a linguagem está presente. Essa mudança, dessa forma, requer novos olhares e novos direcionamentos para os sistemas de ensino, que precisam, desde sua concepção, de currículos e pedagogias capazes de (re)pensar novas formas de levar os sujeitos a agir em um mundo cada vez mais digitalizado.
Com o olhar voltado aos estudos sobre os novos letramentos, Lankshear (1997) e Lankshear e Knobel (1998) abordam o letramento digital a partir da perspectiva dos multiletramentos. Em estudos posteriores (Lankshear; Knobel, 2008), os pesquisadores refletem sobre o letramento digital como uma representação das diferentes formas de práticas sociais que emergem de práticas comuns já existentes e se modificam, continuamente, em novas práticas. Para os estudiosos, “abordar o letramento digital em termos de "letramentos digitais" permite que tipos de análise de práticas sociais, que identificam os pontos-chave nas quais a aprendizagem ativa é desencadeada dentro de sistemas de aprendizagem sócio técnicos eficientes, [sejam] adaptadas e aproveitadas para a aprendizagem educacional” (Lankshear e Knobel , 2008, p. 14, tradução nossa[5]), uma vez que o letramento digital envolve, em distintos espaços e ambientes digitais, uma série de aspectos sociais e cognitivos que requerem diferentes habilidades e competências necessárias para representar o indivíduo como alguém digitalmente letrado.
Entretanto, falar e refletir sobre apropriação e domínio do letramento digital não está relacionado apenas aos discentes em sala de aula, que são, em grande medida, considerados de gerações “mais tecnológicas”. O professor, que forma esses sujeitos para uma sociedade ativa e em crescente transformação, também precisa ter e estar apropriado de habilidades e competências que levem em consideração o uso das tecnologias nas mais variadas práticas sociais que emergem nos diferentes contextos existentes na sociedade.
Seria, então, a apropriação do letramento digital um dos saberes docentes necessários para a prática profissional do professor em atuação nos tempos atuais? Tardif (2014) define o saber docente como “um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais” (Tardif, 2014, p. 36). Em relação aos saberes da formação profissional, o pesquisador aponta para uma dicotomia entre formação específica e a formação pedagógica, sendo a primeira voltada para a questão da formação inicial e continuada do professor, e a segunda, ligada às “reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo, reflexões racionais e normativas que conduzem sistemas mais ou menos coerentes de representação e de orientação da atividade educativa” (Tardif, 2014, p.37). Já em relação aos demais saberes, os disciplinares dizem respeito às diferentes áreas do conhecimento, os curriculares estão relacionados à organização e distribuição de conteúdo nos diferentes níveis de ensino e os experienciais estão vinculados às vivências docentes em suas práticas de sala de aula.
No campo específico para este estudo, damos ênfase aos saberes experienciais, pois partimos da premissa de que, quando falamos de apropriação do letramento digital por parte dos professores, que, a nosso ver, é um dos saberes essenciais para o agir profissional neste século, os docentes precisam experienciar os mais diferentes recursos e as mais diferentes possibilidades de tecnologias midiáticas e digitais em suas práticas pedagógicas. Para Tardif (2014), os saberes experienciais “são saberes práticos e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões” (Tardif, 2014, p. 48-49). Essa cultura docente em ação se encontra, na visão do autor, em interação com outros sujeitos, o que exige dos profissionais diferentes comportamentos, seja como atores, junto de seus pares, ou como sujeitos em interação com outras pessoas (Tardif, 2014).
É preciso, assim, pensar nesse professor como um ator social capaz de ressignificar seus próprios saberes docentes e, consequentemente, suas práticas pedagógicas. Logo, é necessário reavaliar formas de incentivar e aprimorar o conhecimento dos professores acerca das TDs. Para isso, novos delineamentos em relação à formação inicial e continuada de professores precisam ser explorados, principalmente em relação às práticas de experienciação e apropriação das TDs, de modo especial no que diz respeito aos professores de pós-graduação, público geralmente esquecido.
Em estudos recentes sobre práticas de letramento digital de professores, Viegas e Goulart (2020) concluíram que a operacionalização de atividades não pode ser considerada como suficiente para que o professor possa ser considerado como letrado digitalmente. Para que isso aconteça, ele precisa “ter consciência do conteúdo e da operacionalização, de modo que possa transformar a sua prática, caso seja necessário” (Viegas e Goulart, 2020, p. 143). Não deve se fixar, assim, a operar com as tecnologias, mas sim, tomá-las como parte de seu domínio pedagógico. Nesse sentido, acreditamos ser essencial que o professor, ao longo de sua formação, seja ela inicial ou continuada, seja conduzido à reflexão sobre a importância das TDs, experiencie e se aproprie, não só de conceitos, mas das ferramentas e recursos midiáticos em si, para que possa tomá-los como parte de seu saber docente e explorá-los nos diferentes contextos educativos pelos quais circula, construindo sentidos por meio deles.
Dentro do campo de estudos que envolve tecnologias digitais, diferentes investigações também apontam para novas concepções em relação à incorporação das tecnologias na educação e, consequentemente, visam a possibilitar novos desenvolvimentos de saberes do professor. Destacamos aqui o trabalho de Koehler e Mishra (2008a), que propõem o modelo TPACK (Technological Pedagogical Content Knowledge), que apresenta a necessidade de inserção de três componentes centrais para a completa adequação das tecnologias no âmbito educacional, sendo eles a pedagogia, o conteúdo e a tecnologia. A eficiência desse modelo, segundo os investigadores, se dá na interação entre cada um desses componentes, que trazem consigo diferentes conhecimentos: o conhecimento pedagógico (PK), o conhecimento de conteúdo (CK) e o conhecimento tecnológico (TK). Ao conceber a união desses três elementos, conforme a concepção do modelo, o professor passa a oportunizar novas e expressivas formas de conhecimento.
Em tempos em que os espaços não se restringem mais apenas aos físicos e geográficos, mas se expandem em grande proporção aos espaços digitais, é preciso ter novos direcionamentos na educação superior. Tal qual Tardif (2014), reconhecemos que “já é tempo de os professores universitários começarem a realizar pesquisas críticas sobre suas próprias práticas de ensino” (Tardif, 2014, p. 276) e, consoante Xavier (2007), pensamos que “as instituições de pesquisa e ensino [devem] ser as primeiras a se interessar pelas aplicações [nós diríamos ‘apropriações’] pedagógicas das novas tecnologias”, uma vez que é seu papel, enquanto agências formais educativas, “desenvolver no sujeito-aprendiz competências e habilidades necessárias ao exercício de sua cidadania plena” (Xavier, 2007, p. 3). Em vista disso, ponderamos ser papel de todas as instituições, inclusive das universidades, criar condições e possibilidades de novas experiências para que seus professores e pesquisadores possam ter atuação plena em sala de aula, em que as TDs e a cultura híbrida e multimodal possam atravessar todas as atividades acadêmicas de ensino e de pesquisa.
É preciso, para que ocorra uma transformação da área educativa, rever as práticas institucionais ligadas aos profissionais no e para o local de trabalho, uma vez que, além de viver a experiência de passar a fazer parte desse novo ethos, é preciso que lhes seja dada a oportunidade de refletir sobre o seu próprio processo de aprendizagem frente às tecnologias, o que, no caso, pode [e deve] ser realizado através da formação continuada de professores, sendo esse, no caso, o objetivo do curso em cujo âmbito nossa pesquisa se desenvolve, como veremos adiante.
No que diz respeito à aprendizagem dos docentes diante das tecnologias, Kleiman (2014) menciona que, ao mesmo tempo em que as estratégias para o processo de apropriação de um recurso midiático ou de uma tecnologia pelos sujeitos são individuais, a “experiência digital é relacional, dialógica, [e envolve] relações humanas cada vez mais amplas e complexas” (Kleiman, 2014, p. 76). Segundo a autora, sem uma construção individual de novos saberes e novas práticas, os mais variados recursos tecnológicos e midiáticos disponíveis para que os professores os integrem às suas práticas pedagógicas são inúteis. Ademais, aqui também agregamos a concepção de uma construção coletiva, pois, a nosso ver, acreditamos que a troca entre pares é um fenômeno importante para o desenvolvimento individual nesse processo.
De acordo com Trindade, Moreira e Ferreira (2020), com as infinitas exigências da atualidade, as instituições de Ensino Superior “têm-se deparado com a necessidade de se redefinir, no sentido de acompanharem os desafios tecnológicos do mundo pós-moderno e de se ajustarem à mudança de paradigma” (Trindade, Moreira e Ferreira, 2020, p. 1). Diante disso, muitas tiveram, ao longo da pandemia - e ainda têm - de repensar sua concepção de aula e suas práticas e, em vista disso, provocar mudanças atreladas ao perfil do professor em atuação que, devido às complexidades impostas pela situação agravada pela pandemia, reafirma a necessidade de abranger relações humanas amplas e complexas (Kleiman, 2014).
É imperativo pensar que, para que haja uma atuação significativa no processo de ensino-aprendizagem dos alunos, o professor necessita se apropriar das TDs e ser um sujeito letrado digitalmente. Em estudos referentes ao letramento do professor no seu local de trabalho (Kleiman, 2006; De Grande, Kleiman, 2015), um importante elemento na construção profissional do professor é destacado: o da agência social. Para Kleiman, “a formação profissional envolve reposicionamentos sociais que dão forma a uma nova identidade profissional” (Kleiman, 2006, p. 410), e a agência social é uma condição daqueles “que agem na coletividade, exercendo sua ação nos outros, em função dos objetos de um grupo social” (Kleiman, 2006, p. 414-415). A formação do professor, que atua diretamente no coletivo como um agente social, seja na relação com seus pares ou com seus alunos, precisa envolver a apropriação de tecnologias para que se originem novas práticas, construindo, assim, novas e diferentes identidades profissionais.
Na era da informatização, onde a maioria dos alunos é de gerações mais integradas às TDs do que seus próprios professores, formar sujeitos para agir em diferentes contextos sociais requer a popularização das tecnologias nas práticas docentes, na perspectiva de qualificar o ensino com as infinitas possibilidades existentes e, mais do que isso, aproximar a sala de aula às realidades vivenciadas fora dela por aqueles que ocupam os espaços institucionais.
A pandemia mostrou que grande parte dos professores que hoje está em atuação nas diferentes instituições de ensino, inclusive do ensino superior, não está preparada para assumir de imediato uma nova postura pedagógica (veja-se, por exemplo, as discussões que estão em Mendonça et al, 2021). De prontidão, em meio à pandemia, foram instigados e forçados a se atualizar e dar continuidade às aulas, seja como fosse, com os recursos e conhecimentos dos quais dispunham no momento. Essas novas demandas reforçam a necessidade de se possibilitar uma formação continuada que se voltae a novas aprendizagens e letramentos, de modo especial, o letramento digital no e para o local de trabalho, sendo esse, a nosso ver, um dos principais meios para a potencialização de práticas pedagógicas que levem em consideração a apropriação das TDs e sejam agregativas às diferentes áreas de formação presentes nos contextos educativos.
Frente a todo cenário gerado pela pandemia, e pensando para além dele, a partir da concepção de uma perspectiva social de aprendizagem (Wenger, 2001), acreditamos que a criação de espaços no local de trabalho que possibilitem o desenvolvimento e o reconhecimento das TDs pode favorecer para que novas práticas se potencializem e que os professores possam somar e ampliar, para o agora e para o futuro, novos conhecimentos e novas práticas de letramento digital. Nesses espaços de trocas de aprendizagens comumente surgem comunidades de práticas que, em nossa percepção, são fundamentais para o desenvolvimento de novas aprendizagens pessoais e profissionais.
Wenger compreende a aprendizagem como elemento situado e legitimado dentro das práticas sociais e destaca a participação dos sujeitos nos meios sociais nos quais estão inseridos. Para ele, “uma teoria social de aprendizagem deve integrar os componentes necessários para caracterizar a participação social como um processo de aprender e conhecer” (Wenger, 2001, p.22, tradução nossa[6]), com as comunidades de prática sendo “uma parte integral da nossa vida diária[7]”, uma vez que só persistem “porque existem pessoas que participam em ações cujo significado negociam mutuamente[8]” (Wenger. 2001, p. 24, 100, tradução nossa).
O pesquisador caracteriza alguns componentes que, a seu ver, são importantes para esse processo. São eles: i) significado: sendo ele a nossa capacidade de experienciar a vida e o mundo como algo significativo; ii) prática: caracterizada pelas perspectivas compartilhadas que podem sustentar o compromisso mútuo na ação; iii) comunidade: que faz referência a um grupo social que tem participação e atuação em uma mesma comunidade; iv) identidade: descrita como a mudança que produz as diferentes aprendizagens de quem somos e de como criamos histórias pessoais [e aqui para nós profissionais] de transformação nos distintos contextos aos quais nos filiamos ao longo da vida (Wenger, 2001).
No grupo que acompanhamos para a realização deste estudo, esses componentes se tornaram perceptíveis a cada nova demanda pedagógica imposta, uma vez que ela trazia consigo uma prática real, necessária e extremamente emergencial devido à pandemia. Houve, assim, uma aceleração e uma necessidade imediata de ressignificação do grupo de professores que participava da formação continuada, principalmente no que diz respeito a resolver questões relacionadas às TDs, uma vez que, do dia para a noite, foram premidos a se adaptar à nova modalidade.
Segundo Figueiredo (2019), para o desenvolvimento de novas competências, “só a participação ativa em práticas sociais complexas, reais ou simuladas, ricas e variadas, permite a sua emergência e consolidação” (Figueiredo, 2019, p.3). E foi isso que, de fato, aconteceu com o surgimento da pandemia, ocasionando novas necessidades de adaptações das práticas profissionais. A (re)negociação de significados entre os pares ocorreu de forma colaborativa em prol de uma mesma necessidade: foi no grupo da Cultura Digital, que apresentaremos na próxima seção, que os professores tinham a oportunidade para trocar experiências e construir conhecimento conjuntamente. Evidentemente, num primeiro momento, para muitos, o que houve foi uma transposição das práticas presenciais para o online (por isso até chamado de emergencial remoto), mas muitas aprendizagens puderam ser ressignificadas ao longo do processo.
Em nossa percepção, principalmente no que diz respeito às práticas que visam ao desenvolvimento de uma Cultura Digital nas universidades, é preciso que novas oportunidades de formação continuada sejam dadas aos professores da pós-graduação stricto sensu, uma vez que, por mais alto que seja seu nível de formação, ainda assim é preciso pensar sobre o que se faz em sala de aula, como se faz, para que e quem se faz.
Na próxima seção, apresentaremos a metodologia da investigação, bem como explicaremos um pouco mais sobre o curso de formação continuada onde, através das interações, geramos o corpus desta presente pesquisa.
2. METODOLOGIA
Caracterizamos a presente investigação como um estudo de caso que, segundo as palavras de Leffa (2006), é uma “investigação profunda e exaustiva de um participante ou pequeno grupo”, em que procuramos investigar “tudo o que é possível saber sobre o sujeito” escolhido e que “achamos que possa ser relevante para a pesquisa” (Leffa, 2006, p. 14).
Dentro do contexto por nós aqui apresentado, assumimos uma perspectiva interacional de linguagem, em que locutor, nas palavras de Bakhtin (2006), “serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas” (Bakhtin, 2006, p. 93-94), bem como uma perspectiva social de aprendizagem (Wenger, 2001), pois essa acontece sempre na interação com os outros e por meio da experiência.
Para o desenvolvimento desta investigação, acompanhamos, em primeiro plano, desde agosto de 2018, coordenadores e professores de diferentes áreas do conhecimento dos cursos de mestrado e doutorado de uma universidade privada da Região Sul do Brasil, participantes do curso de formação continuada intitulado “Ecossistema de Educação na Pós-graduação: Cultura Híbrida e Multimodal”, oferecido pela referida universidade.
Atualmente, o grupo conta com cerca de 65 participantes, entre professores-formadores, pesquisadores e participantes. A formação, anterior à pandemia, mantinha encontros presenciais a cada 15 dias. Isso, no entanto, passou a acontecer de forma remota, sem maiores percalços, depois que as medidas de distanciamento social físico foram adotadas. Eles eram/são orientados e conduzidos à reflexão acerca da cultura digital por uma professora coordenadora do projeto e membros de sua equipe - da qual fazemos parte -, que planejam e executam o percurso do curso de formação continuada conforme o desenvolvimento que vai sendo apresentado pelos participantes.
Além dos encontros presenciais/remotos, o curso é conduzido, desde o seu início, em um Ambiente Virtual de Aprendizagem - doravante AVA - disponibilizado pela universidade, o Moodle. Nesse ambiente, os professores são convidados a participar de interações através de fóruns, chats, entre outros. Desde outubro de 2018, há também um grupo no aplicativo WhatsApp para troca de mensagens e comunicação, sendo grande parte das interações configuradas em texto escrito e imagético (stickers e gifs, por exemplo) e as outras funções muito pouco - ou quase nunca - exploradas - áudio e vídeo -. Esse grupo de WhatsApp, a partir de sua criação, passou a ser chamado de Cultura Digital, constituindo uma grande comunidade de prática (Wenger, 2001) que, em torno de assuntos relacionados às TDs, refletem e desenvolvem novas aprendizagens. Essa é a nomenclatura que mencionamos ao longo do texto e que também compõe o título dessa pesquisa, e que sempre utilizamos quando nos referimos a essa comunidade.
Para a análise e reflexão deste artigo, apresentaremos as interações de Marina, uma professora da área das engenharias e exatas. O objetivo é mostrar sua trajetória no curso de formação e o seu desenvolvimento pessoal e, consequentemente, profissional que ela mesmo reconhece em seu discurso. Marina tem 59 anos e atua como professora na universidade há mais de 20 anos. A escolha da participante se deu devido a suas interações serem, em nossa percepção enquanto investigadores, instigadoras e significativas, uma vez que ela era a professora que apresentava maior resistência em relação às tecnologias no início do curso, como poderemos perceber na discussão dos dados na próxima seção. Marina também acabou sendo uma das participantes mais empolgadas e ativas no grupo e nas aulas. As informações utilizadas para a análise são recortes retirados tanto do Ambiente Virtual de Aprendizagem - AVA - quanto das interações no grupo de WhatsApp Cultura Digital e correspondem desde as primeiras interações de Marina, em Agosto de 2018, até junho de 2020, quando, em meio à pandemia, a participante se mostra preparada para encarar a situação posta, graças a sua participação no curso/grupo.
Na próxima seção, discorremos sobre as percepções e aprendizagens relatadas através das interações de Marina.
3. RESULTADOS
Aprendizagens e reflexões do curso de formação continuada na voz da participante de Marina
Com o surgimento da pandemia, diversos professores foram desafiados em seu fazer, uma vez que muitos nunca haviam sido instigados a pensar e refletir sobre novas práticas que levassem em consideração a presença e o uso das TDs em suas concepções de aula. No entanto, isso não aconteceu para os docentes do stricto sensu com os quais se desenvolve esta pesquisa, uma vez que eles tinham para onde correr: a comunidade de prática e aprendizagem que se formara ao longo dos dois anos de formação, a Cultura Digital, foi o alicerce para diferentes trocas de experiências - e também de reflexões sobre a vida naquele momento tão difícil para a humanidade.
A pandemia acelerou o processo de (trans)formação dos professores, como poderemos acompanhar a seguir nas interações de Marina, levando-os à ressignificação de suas práticas em sala de aula e legitimando a comunidade de prática como um espaço para a aprendizagem de novos saberes e, consequentemente, como espaço de desenvolvimento pessoal e profissional.
No início do curso, em 2018, Marina afirma não saber exatamente o que estava fazendo ali. Na época, apresentava uma postura relutante e demonstrava pouco conhecimento das ferramentas digitais, inclusive para navegar no próprio Ambiente Virtual de Aprendizagem adotado pela universidade para o curso de formação:
Excerto 1
o Moodle ainda é um mistério para mim. Reconheço sua importância por diversos fatores, por isso, quero e preciso aprender. (Marina, 19/09/2018, no fórum do AVA.)
Estimulada ao longo do curso a viver a experiência de apropriação das tecnologias através de diferentes processos e espaços de aprendizagem, desde os mais simples até os mais complexos, ou seja, utilizar a tecnologia para fazer algo, um mês depois, a participante utilizou a própria plataforma Moodle, em que ela mesmo relatou “estar muito crua”, para compartilhar uma experiência que a deixara muito feliz:
Excerto 2
Gostaria de compartilhar minha experiência com a elaboração de formulários. Primeiro que estou super contente por saber que esta tarefa não é tão misteriosa quanto eu imaginava. (Marina, 11/10/2018, AVA.)
Ao analisarmos a fala de Marina, percebemos que sua interação aponta para uma reflexão sobre seus próprios saberes, uma vez que ela mesma, após experenciar o uso de uma ferramenta para dar conta de uma atividade proposta na formação continuada, considera que mexer com a tecnologia não é algo tão misterioso quanto pensava. Tal reflexão nos permite acompanhar uma mudança identitária profissional e ver Marina se (re)construindo em relação aos saberes docentes, uma vez que ela assume discursivamente um posicionamento diferente do qual possuía anteriormente.
Essa descoberta, como podemos perceber em sua fala, a deixou “super contente” e resolveu o mistério que dizia sentir quanto ao uso das tecnologias, alinhando-se ao que Tardif (2014) destaca acerca do desenvolvimento do saber profissional, como algo “associado tanto às suas fontes e lugares de aquisição quanto aos seus momentos e fases de construção” (Tardif , 2014, p. 68). Notamos, a partir dessas primeiras experiências, que começa a sua transformação, em parte porque havia uma motivação: Marina queria e precisava aprender.
Ao longo de 2019, Marina seguiu, assim como grande parte do grupo, se apropriando das tecnologias e se desenvolvendo profissionalmente em comunidade. Nesse período, já adaptada ao propósito da formação, reconhece os benefícios do trabalho em grupo e sente-se grata pelas aprendizagens adquiridas:
Excerto 3
Sou muito grata por participar desse grupo. Obrigada a todos. Tenho aprendido muito com vocês todos. (Marina, 18/11/2019, Grupo de WhatsApp)
Um ano depois, vemos uma Marina menos tensa. Estimulada, assim como os outros participantes, a se engajar nas atividades propostas e desenvolver agência social (Kleiman, 2006), ela foi estabelecendo relações entre aquilo que aprendia no curso e a sua própria prática profissional, passando a compartilhar propostas de novas práticas pedagógicas que levavam em conta o uso de diferentes TDs.
Já em 2020, o que era discutido no grupo fazia sentido para ela agora. Inclusive, no período das aulas remotas em meio à pandemia, através de uma capacitação aos professores da universidade sobre avaliação a partir do desenvolvimento de cálculos no ambiente virtual, Marina alterna seu papel e ministra uma oficina para outros colegas da instituição. Em interação no grupo de WhatsApp, momentos antes de sua apresentação, Marina demonstra estar nervosa, porém grata em poder contribuir com o momento enfrentado por todos, agora ajudando a formar:
Excerto 4
Estou nervosa… mas feliz por poder contribuir. Ou melhor, todo grupo contribuir, pois é resultado de um processo construído no nosso grupo. (Marina, 10/06/2020, Grupo de WhatsApp, Grifo nosso.)
Nessa fala de Marina, podemos perceber a sua vontade de ajudar seus colegas professores - não só dotricto sensu, pois a formação da qual participou como apresentadora foi oferecida a toda comunidade acadêmica da instituição na ocasião - através de seu engajamento e compromisso em contribuir com os saberes profissionais adquiridos a partir dos estímulos e das aprendizagens propostas ao grupo. Nota-se que Marina assume agência social na perspectiva proposta por Kleiman (2006), uma vez que sua atitude está condicionada à ideia de um agir na e para a coletividade profissional, em função de um objetivo comum partilhado e se assume como parte de um todo. Como numa comunidade de prática todos ensinam e todos aprendem, ela encara a sua apresentação como algo feito a partir do grupo, local que aponta como “nosso”. Além disso, tal engajamento, comparado a sua percepção inicial em relação ao curso de formação, aponta para a ressignificação de sua compreensão, domínio e apropriação do seu próprio letramento digital, uma vez que, ao tentar ajudar os demais colegas, demonstra reconhecer a importância da apropriação das tecnologias nas diferentes áreas e práticas pedagógicas docentes.
A participação ativa de Marina e de outros professores em prol de um compromisso mútuo a partir do repertório vivenciado e compartilhado (Wenger, 2001) nos demonstra a responsabilidade e o senso de coletividade com que os professores encararam o momento de aprendizagem, levando-nos a pensar que, ao viver o ensino superior na época de pandemia, puderam compreendê-lo como um espaço híbrido, aberto e flexível. Além disso, ao vivenciar esse momento, também puderam experienciar algo novo e compreender, como bem expressam Trindade, Moreira e Ferreira (2020) “o processo de ensinar e de aprender enquanto um sistema vivo, que se constrói, adapta e transforma de acordo com as necessidades de todos os seus intervenientes” (Trindade, Moreira e Ferreira, 2020. p. 10).
Ao longo de suas interações com o grupo durante suas aulas remotas na pandemia, inúmeras vezes Marina se diz grata pelas aprendizagens que construiu no e com o grupo de formação continuada para que pudesse encarar o momento da melhor maneira possível.
Excerto 5
não poderia imaginar que o futuro estaria tão próximo. Felizmente todos nós do grupo estamos nos saindo bem com as diferentes tecnologias. E este grupo está multiplicando seus conhecimentos com demais profes. Ou seja, Grupo da Cultura Digital ajudando fortemente toda [universidade] neste momento. (Marina, 19/03/2020, Grupo de WhatsApp.)
Para Marina, sua inserção nesse grupo de professores dostricto sensu e nessa grande comunidade de prática originada pelo curso de formação continuada, já existente antes da pandemia, possibilitou que pudesse encarar de forma mais legitimada os saberes digitais essenciais para o contexto que estava vivenciando, uma vez que, como bem apontam De Grande e Kleiman (2015), “a construção de um coletivo para se identificar - docentes em busca de respostas a necessidades imediatas de ensino/aprendizagem de seus alunos - favorece a formação [de professores] em seu local de trabalho” (De Grande, Kleiman, 2015, p. 52).
Marina também reconhece o espírito de colaboração que envolveu ainda mais o grupo nesse momento:
Excerto 6
Superações mil. Muito gratificante isso, bem como o espírito colaborativo, mas nada disso teria sentido se não atingíssemos de forma eficiente os alunos. (Marina, 19/03/2020, Grupo de WhatsApp.)
Assim, além do engajamento e envolvimento profissional nesse período, outro fator nos chama a atenção dentro dessa comunidade: a (re)construção de novas experiências e significados a partir da reflexão de Marina - aqui representando também outras vozes - ao apontar a potencialidade do sentido colaborativo para o desenvolvimento profissional docente e a importância de já estar inserida em um curso que visava à formação continuada para (re)pensar em práticas pedagógicas no ensino superior. Dadas as inúmeras atribuições do professor do stricto sensu, essa é uma competência, ainda que desejável, pouco acionada no dia a dia do pesquisador.
Em um dos componentes que caracterizam a teoria social de aprendizagem, ao qual denomina de significado, Wenger (2001) reflete sobre a capacidade humana de experimentar a vida e o mundo como algo significativo. Para o teórico, “viver é um processo constante de negociação de significado” (Wenger, 2001, p. 77, tradução nossa[9]). Como podemos perceber nas falas da participante, a colaboração que ocorreu entre os professores e as trocas de conhecimento possibilitaram com que pudessem viver significativamente novas aprendizagens e experiências e ressignificar seus saberes docentes a partir da colaboração entre os pares.
Toda essa possibilidade de trocas de saberes entre os docentes da universidade dentro da comunidade de prática levou a participante também a considerar os benefícios que, embora a ocasião gerada pela pandemia não fosse a pretendida,, serão construídos e conquistados pelos sujeitos e pelas próprias instituições de ensino a partir da ressignificação das práticas pedagógicas frente ao contexto da pandemia:
Excerto 7
Nada mais será como antes, nem nós. O futuro chegou. Teremos a experiência do antes e do depois [...] o que estamos vivenciando em termos de transformação na docência é uma coisa muito boa, que deve ser valorizada. (Marina, 08/05/2020, Grupo de WhatsApp)
Quando se começou essa formação, em 2018, se pensava no futuro. Como diz Marina, no dia 19.03.2020 no WhatsApp, dia em que a universidade retomou as aulas após ter parado por 48h, ela nunca imaginara que o futuro chegaria tão rapidamente (excerto 5). Essa ideia ela retoma no dia 08.05.2020 (excerto 7). A pandemia acelerou a chegada do futuro, estamos vivenciando ‘a passagem de eras’. Estar no exercício da docência nesse momento, de fato, tem seu diferencial, porque experienciamos as mudanças que se tornaram prementes.
A fala de Marina, no próximo excerto, é muito valiosa para (re)pensar a formação de professores não só para este momento, mais daqui em diante:
Excerto 8
Nem imagino como eu estaria agora se não tivesse tido a iniciação no nosso grupo de Cultura Digital. Felizmente tivemos isso. (Marina, 20/04/2020, Grupo de Whatsapp.)
A trajetória de Marina aqui apresentada nos leva a pensar que criar condições específicas de aprendizagem no âmbito de uma comunidade de prática no local de trabalho do professor contribui para a legitimação dos saberes docentes e seu consequente desenvolvimento em relação às TDs, bem como nos dá subsídios para argumentar em prol da necessidade de uma formação continuada permanente também para o professor do ensino superior, mais especificamente do stricto senso. Tecnologia não é ferramenta, não se trata de uso ou aplicação. Tecnologia é extensão de nós mesmos e, na nossa interação com ela, mudamos e somos mudados.
Figura 1 - Processo de desenvolvimento profissional de Marina
No processo de desenvolvimento de Marina, observamos que vai da insegurança à felicidade. Notamos também, nas mais diferentes interações de Marina, seu sentido de pertencimento ao grupo quando ela utiliza de termos como “todo grupo”, “nosso grupo”, “espírito colaborativo”. Ao longo de suas interações, ela reconhece o fato de poder aprender, seja antes ou durante a pandemia, com as possibilidades que o curso de formação proporcionou e o quanto isso a ajudou a enfrentar o atual momento de forma mais branda e menos sofrida, inclusive se propondo a ensinar o que aprendeu. Também, como verificamos em seu discurso, saiu de uma postura individual e tornou-se parte do coletivo, e se diz grata por estar ali e aprender com todos. Essas reflexões da participante se alinham às proposições de Tardif (2014), que pondera ser “através da relação com os pares e, portanto, através do confronto entre os saberes produzidos pela experiência coletiva dos professores, que os saberes experienciais adquirem uma certa objetividade” (Tardif, 2014, p. 52).
Esse discurso da experiência está no discurso de Marina. Problemas, como bem vivenciamos na atualidade, precisam, incontestavelmente, de reflexão nos espaços de formação continuada, uma vez que, conforme o pesquisador, “as fontes da formação profissional dos professores não se limitam à formação inicial na universidade; trata-se, no verdadeiro sentido do termo, de uma formação contínua e continuada que abrange toda a carreira docente” (Tardif, 2014, p. 287) e, em se tratando de profissionais que atuam como docentes em instituições de ensino superior, essas formações devem fazer parte de propostas pedagógicas que visam à qualificação do corpo docente em atuação.
4. EM JEITO DE CONCLUSÃO
Ensinamentos da pandemia
A pandemia - e o distanciamento social físico a que ela nos obrigou - nos mostrou nossa incrível capacidade de adaptação - ainda que, num primeiro momento, tenhamos apenas transposto o que já fazíamos no presencial -, nossa incrível capacidade de colaboração e nossa incrível capacidade de empatia. As contribuições de Marina apontam que, a partir da formação continuada de que já tomava parte, ela pôde ter uma melhor passagem do ensino presencial físico para o remoto emergencial e, no ambiente que lhe foi oportunizado, está re(construindo) novos saberes profissionais e seu próprio letramento digital no e para o local de trabalho. Acreditamos que, assim como Marina, os demais professores participantes também puderam aprender e ressignificar suas aprendizagens. A trajetória de Marina nos mostra também que o desenvolvimento do letramento digital não acontece fora das práticas sociais; somente no seu escopo ele (junto com as TD) tem sentido.
Nas interações de Marina, podemos observar o sentimento de pertencimento a uma comunidade de prática que, conjuntamente, está (re)construindo novos saberes pessoais e profissionais a partir da apropriação das TDs dentro de seu próprio ambiente de trabalho. Isso nos demonstra a necessidade de se (re)pensar espaços que possibilitem o contato e a interação de profissionais que atuam em um mesmo local e em prol de um mesmo objetivo. E a pós-graduação stricto sensu - em que muito trabalho individual é feito - é um campo fértil para isso.
Acreditamos, assim, que a formação continuada que serve como lócus deste estudo, aliada à reflexão e ao conhecimento dos mais variados recursos tecnológicos e midiáticos, mostra-se como uma grande possibilidade de ressignificação das identidades profissionais docentes, potencializando e agregando novas e importantes práticas pedagógicas que supram as demandas educacionais da atualidade. O que começou como preocupante (ou mistério, como afirma Marina no excerto 1) termina com a boa sensação do sentimento de pertencimento e da satisfação de fazer parte do futuro - que se tornou presente.
Se teremos - e seremos - os mesmos professores após a COVID-19? Com certeza não. Estamos sendo levados a ressignificar diariamente as nossas práticas e fazer muitas coisas que antes não fazíamos. Esses novos tempos, espaços e tecnologias exigem dos professores outras práticas pedagógicas e diferentes formas de interação entre os sujeitos (professor x professor, professor x aluno), e só tem sentido, como diz Marina, se melhorar a entrega que é feita para os alunos. A pandemia da COVID-19 nos deixa claro que precisamos estar em constante formação. Dessa forma, é imprescindível que as instituições universitárias criem espaços de aprendizagens e colaboração entre os profissionais que ali atuam, pois é nesse local de trabalho e a partir das comunidades que se instauram ali, como Marina muito bem nos ensina, que grandes e significativas mudanças podem acontecer.
REFERÊNCIAS
Bakhtin, M.; Voloshinov, V. N. (2006). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec.
De Grande, P. B., & Kleiman, A. (2015). Agência social do professor: modos de interação e suas implicações nos processos de autoformação no local de trabalho. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.19, n.36, p. 29-56
Figueiredo, A. D. (2019) Compreender e desenvolver as competências digitais. Disponível em: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/8108/1/p. 1-8.pdf
Kleiman, A. B. (2006). Professores e agentes de letramento: identidade e posicionamento social. Filologia e Linguística Portuguesa, p.409-424. https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v0i8p409-424
Kleiman, A. B. (2014). Letramento na contemporaneidade. Bakhtiniana, São Paulo, 9 (2): 72-91, Ago./Dez.
Koehler, M. J., & Mishra, P. (2008a). Introducing TPCK. In J. A. Colbert, K. E. Boyd, K. A. Clark, S. Guan, J. B. Harris, M. A. Kelly & A. D. Thompson (Eds.). Handbook of Technological Pedagogical Content Knowledge for Educators, 1-29. New York: Routledge.
Lankshear, C. (1997). Changing Literacies. Buckingham & Philadelphia: Open University Press.
Lankshear, C.; Knobel, M. (1998). Critical Literacy and New Technologies. Symposium paper, American Educational Research Association Annual Conference. San Diego, pp. 13-17. Disponível em: http://www.geocities.com/c.lankshear/critlitnewtechs.html
Lankshear, C.; Knobel, M. (2008). Digital Literacies: concepts, policies and practices. New York: Peter Lang Publishing.
Leffa, V. J. (2006). Pesquisa em Lingüística Aplicada: temas e métodos / [Organizado por] Vilson J. Leffa. – Pelotas: Educat.
Mendonça, M. et al (orgs.). (2021). Docência pandêmica: práticas de professores de língua(s) no ensino emergencial remoto. São Carlos: Pedro & João Editores, 294p.
Schlemmer, E; Kersch, D; Oliveira, L. (2020). Formação de professores-pesquisadores em contexto híbrido e multimodal: Desafios da docência no stricto sensu. Revista Tecnologias na Educação - Ano 21 -número/vol. 33 - Edição Temática XIV. Disponível em: https://tecedu.pro.br/ano12-numero-vol33-edicao-tematica-xiv/
Tardif, M. (2014) Saberes Docentes e formação profissional. 17. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes.
Trindade, S. D., Moreira, J. A., Ferreira, A. G. (2020). Pedagogia(s) 2.0 em rede no Ensino Superior. In: Trindade, Sara Dias-, Moreira, J. António, Ferreira, António Gomes (org). Repensar a Pedagogia no Ensino Superior. Coimbra, p. 9 a 23.
Viegas; P. C.; Goulart, I. V. (2020). O estado da arte da produção acadêmica sobre o letramento digital na formação docente. Revista IberoAmericana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 15, n. 1, p. 125-145, jan./mar. eISSN: 1982-5587. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v15i1.12217
Wenger, E. (2001) Comunidades de práctica: aprendizaje, significado e identidad. Paidós.
Xavier, A. C. (2007). As Tecnologias e a aprendizagem (re)construcionista no Século XXI. Revista Hipertextus. v. 1, pp. 1-9. Disponível em:
http://arquivohipertextus.epizy.com/volume1/artigo-xavier.pdf
Xavier, A. C. (2011). Letramento digital: impactos das tecnologias na aprendizagem da Geração Y. Revista Calidoscópio. vol. 9, n. 1, pp. 3-14.
Cómo citar en APA:
Andrade, F.D.de & Kers, D.F. (2021). Ensino remoto e formação continuada em serviço na pós-graduação stricto sensu. Revista Educación Superior y Sociedad, 33(2), 377-401.
[1] O termo Distanciamento Controlado foi utilizado no estado do Rio Grande do Sul, e se trata de uma das medidas adotadas na pandemia da COVID-19, com o intuito de evitar a propagação da doença.
[2] Compreende-se por ensino emergencial remoto a atividade de manter a rotina de sala de aula em uma plataforma virtual, acessada de diferentes localidades, com interações simultâneas.
[3] Aqui, compartilhamos do conceito de hibridismo e multimodalidade adotado por Schlemmer, Kersch e Oliveira (2020) em “Formação de professores-pesquisadores em contexto híbrido e multimodal: Desafios da docência no stricto sensu”. Compreendemos, assim como as autoras, o hibridismo em sua multiplicidade a partir do conceito de híbrido de Latour (1994, 2012) e das discussões propostas por Schlemmer (2013, 2014, 2015a, 2015b, 2016a, 2016b, 2016c, 2017, 2018), sendo ele fluxo das diferentes interações, ações e comunicações entre as ações humanas e não-humanas dados em diferentes espaços geográficos e digitais, incluindo o espaço híbrido. Quanto à multimodalidade, concebemos como um prolongamento das interações e ações nos diferentes tempos e espaços que possibilitam simultaneamente processos de aprendizagem através de diferentes meios - livros, jogos digitais, aplicativos etc. - e formas - escrita, leitura, imagem, entre outros -.
[4] O Grupo de Nova Londres - The New London Group - é conhecido por dar ênfase ao conceito de multiletramentos propondo uma Pedagogia de Multiletramentos que visa à escola explorar os mais diversos letramentos presentes na sociedade a partir de diferentes elementos, entre eles, as TDs.
[5] Approaching digital literacy in terms of “digital literacies” allows for the kinds of analysis of social practices that identify key points at which effective learning is triggered within efficient socio-technical learning systems [...] adapted and used for educational learning.
[6] una teoría social del aprendizaje debe integrar los componentes necesarios para caracterizar la participación social como un proceso de aprender y de conocer
[7] las comunidades de práctica son una parte integral de nuestra vida diaria.
[8] porque hay personas que participan en acciones cuyo significado negocian mutuamente.
[9] vivir es un proceso constante de negociación de significado.