REVISTA EDUCACIÓN SUPERIOR Y SOCIEDAD
2021, VOL. 33 Nº 2, 31-52
https://doi.org/10.54674/ess.v33i2.461
e-ISSN: 26107759
Recibido 2021-04-01│Revisado 2021-05-22│Aceptado 2021-09-09│Publicado 2021-11-15
Ensino superior, pandemia e trabalho: rupturas e continuidades
Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva @
Daniel Santos da Silva2 @
1Universidade Federal de Goiás, Brasil
2Universidade Estadual do Paraná, Brasil
Resumo: Atualmente alguns desafios se apresentam que confrontam nossas capacidades coletivas de lidar com rupturas drásticas em nossas experiências espaço-temporais. Se focamos em problemas relacionados ao ensino superior, especialmente no Brasil, a pandemia desafia a própria existência da universidade e instituições afins – como as conhecemos, pelo menos; desde o avanço da ideologia neoliberal até o estabelecimento da pandemia do novo coronavírus enlaçam-se conflitos e contradições que nos levam a indagar a respeito do que seriam mudanças estruturais ou adaptações momentâneas em tal contexto; assim, neste artigo, procuramos levantar algumas questões sobre a realidade do ensino superior e o advento da pandemia, recolocando possibilidades de sentido que correm risco de serem invisibilizadas diante de uma crise sanitária que reverbera outras crises e que segue ceifando vidas pelo mundo.
Palavras chave: Ensino Superior; Pandemia; Trabalho; Capitalismo.
Higher education, pandemic and work: ruptures and continuities
Abstract: Currently, some challenges are confronting our collective capacities to deal with drastic disruptions in our space-time experiences. If we focus on problems related to higher education, especially in Brazil, the pandemic challenges the very existence of the university and related institutions - as we know them, at least; from the advance of neoliberal ideology to the establishment of the pandemic of the new coronavirus,conflicts and contradictions that ensue lead us to inquire about what would be structural changes or momentary adaptations in such a context. Thus, in this article, we seek to raise some questions about the reality of higher education and the emergence of the pandemic, replacing possibilities of meaning that are at risk of being made invisible in the face of a health crisis that reverberates other crises and that continues to take lives around the world.
Keywords: Higher Education; Pandemic; Work; Capitalism.
Educación superior, pandemia y trabajo: rupturas y continuidades
Resumen: Actualmente, algunos desafíos
que se presentan confrontan nuestras capacidades colectivas para tratar con
disrupciones drásticas en nuestras experiencias espacio-temporales. Si nos
enfocamos en los problemas relacionados con la educación superior, especialmente
en Brasil, la pandemia desafía la existencia misma de la universidad y de las
instituciones relacionadas – como las conocemos, al menos;
desde el avance de la ideología neoliberal hasta el establecimiento de la
pandemia del nuevo coronavirus, surgen
conflictos y contradicciones que nos llevan a indagar sobre cuáles serían los
cambios estructurales o adaptaciones momentáneas en tal contexto. Así, en este
artículo, buscamos plantear algunas preguntas sobre la realidad de la educación
superior y la aparición de la pandemia, reemplazando posibilidades que corren
el riesgo de invisibilizarse ante una crisis sanitaria que repercute en otras
crisis y que sigue cobrando vidas en todo el mundo.
Palabras clave: Educación Superior; Pandemia; Trabajo; Capitalismo.
Enseignement supérieur, pandémie et travail: ruptures et continuités
Résumé: Actuellement, certains défis qui se présentent confrontent nos capacités collectives à faire face aux bouleversements drastiques de nos expériences spatio-temporelles. Si nous nous concentrons sur les problèmes liés à l'enseignement supérieur, en particulier au Brésil, la pandémie remet en cause l'existence même de l'université et des institutions connexes - telles que nous les connaissons, du moins; de l'avancée de l'idéologie néolibérale à l'établissement de la pandémie du nouveau coronavirus, des conflits et des contradictions s'ensuivent qui nous amènent à nous interroger sur ce que seraient les changements structurels ou les adaptations temporaires dans un tel contexte. Ainsi, dans cet article, nous cherchons à poser quelques questions sur la réalité de l'enseignement supérieur et l'avènement de la pandémie, remplaçant les possibilités qui risquent d'être rendues invisibles face à une crise sanitaire qui a des impacts sur d'autres crises et qui continue de prendre des vies partout dans le monde.
Mots clés: Enseignement Supérieur; Pandémie; Travail; Capitalisme.
PREÂMBULO
Mais de um ano se passou desde que nossos modos de vida foram modificados. Algumas necessidades emergiram e nos puseram a lidar com outras maneiras de fazer e pensar a educação, redimensionando certos desafios para quem vive em uma sociedade baseada na educação escolarizada. Nesse “curto” intervalo, já é possível – ou inevitável – analisar o que fizemos, quais posicionamentos tomamos no que se refere ao ensino (muitas vezes sem refletir); colocar em pauta soluções que forjamos individualmente e nas instituições das quais fazemos parte e, então, ponderar os efeitos de viver experiências-limite como a da pandemia de COVID-19, causada pelo novo vírus SARS-CoV-2, ao mesmo tempo em que refletimos sobre problemas persistentes na prática do ensino superior no Brasil.
Tais experiências-limite se reportam a outras – para o pensamento sobre o presente, há sempre a ferramenta da comparação, de imagens de um mundo a que as coisas pertenciam; mesmo que naturalizada (ou exatamente por isso), a funcionalidade dessas imagens é bem limitada. Porém, com um tanto de escavação, percebemos que muitas experiências passadas já implicavam preocupações com as quais agora nos debatemos com mais urgência. Há certa permanência em problemáticas que persistem mesmo no exame de diferenças circunstanciais. Por exemplo: em relação à universidade pública, já em nosso tempo de estudantes, questões como as desiguais oportunidades de acesso ao conhecimento e de permanência nas universidades sempre estiveram diante de nossas vistas. Neste texto, escrito a quatro mãos, apresentamos olhares advindos de experiências de um par de docentes universitária(o)s, ex-estudantes de universidades públicas do início na graduação às conclusões na pós-graduação. Para nós, a vida escolar e acadêmica foi e é um laboratório vivo na formação de nossas percepções sobre a humanidade.
Nossos olhares convergem, pois, em várias perspectivas, as quais são propiciadas a cada singularidade conforme suas relações e memórias. Geografia e Filosofia, nossas áreas de formação, são consideradas como campos de conhecimento bem distintos na formulação das questões que propõem – embora o pensamento filosófico possa ser compreendido como referência para todos os campos de conhecimento, o que evidencia as possibilidades de constituição de diálogos. Ademais, quem vai estudar nesses cursos enfrenta uma semelhante média/baixa concorrência no acesso às universidades;[1] isso, em certa medida, permite-nos afirmar que os dois cursos resguardam importantes proximidades de públicos de estratos sociais semelhantes.
Este preâmbulo é um preparo para o que diremos a seguir, mas é já, não menos, um posicionamento desde os lugares e tempos de onde viemos e de onde estamos a exercitar a docência. Há permanências e rupturas entre nós, certamente – há, como suposto fundamental, a visão comum de que a pandemia não atinge as universidades de maneira uniforme, antes reproduz as desigualdades existentes e conhecidas no ambiente acadêmico (minimizando sempre mais os valores atrelados a diferenças concretas, pois o que interessa são diferenças vendáveis). Nossos percursos acadêmicos têm em comum, também, o usufruto de diversas políticas de permanência e de acesso a bolsas financiadas por instituições de fomento (comum também a consciência de que muitas dessas conquistas são atacadas com pretextos ainda mais cínicos em tempos da pandemia); dessa maneira, não surpreende que o caminho da pós-graduação para a docência tenha se realizado, para nós, “naturalmente”, como desejo e possibilidade, e que, atualmente, a(o)s autora(e)s sejam docentes em duas instituições públicas: a UFG, Universidade Federal de Goiás e a Unespar, Universidade Estadual do Paraná.
Complementarmente, partilhamos de vivências familiares que nos dispuseram, de algum modo, a acessar narrativas muito sutis de capital cultural – no sentido anotado por Bourdieu (2007, p. 27), como a herança da família no processo de formação do sujeito e viável pelos efeitos acumulados da transmissão cultural assegurada pela família e pela escola (cuja “eficácia” depende da relevância do capital cultural diretamente herdado da família). Isso põe que não há vazio quando chegamos na universidade: cada singularidade traz a sua história, talvez privilégios, alguns fracassos e sucessos, bagagem econômica, faltas e deficiências (estas, já sintomas de paradigmas de avaliação que tendem a ser ideológicos). Continuamente, a vida estudantil na universidade se alimenta da vivência dos espaços, de imersões: o restaurante universitário, a moradia estudantil, a sala de aula, o ponto de ônibus, a biblioteca. Há quem não viva todos esses lugares, há acessos em escalas e possibilidades diversas, e há o que se alimenta, claro, do que vem do exterior da universidade.
Quanto a nós, especificamente, por meio de livros, gibis e enciclopédias costuramos o nosso olhar sobre o mundo, em cidades distintas, mas igualmente periféricas de vários pontos de vista, no sertão de Goiás e no litoral do Ceará. Vem-nos à mente Lahire (2012), que escreve sobre fracasso e sucesso escolar, ressaltando a importância do ambiente familiar dos indivíduos para definição do papel da escola; também a clássica pesquisa de Bourdieu e Passeron (2012) demonstra o modo como esse capital interfere na formação acadêmica. Aqui, escrevemos a partir da amálgama de experiências cuja temporalidade se estende por toda nossa formação profissional e, em específico, pela nossa experiência como docentes em instituições públicas. As diferenças institucionais e locais ampliam as possibilidades de ressaltar experiências e conceitos, bem como problematizar e apresentar questões de ordens política e pedagógica.
1. INTRODUÇÃO (PÓS-PREAMBULO)
É perceptível – em variados graus – que todas as etapas de ensino e pesquisa foram afetadas com a pandemia. Assim, um texto como este pressupõe um recorte – dado pelo tema do dossiê, mas fomentado pela urgência de pensarmos, ainda outra(s) vez(es) (em contexto de riscos ampliados), lugares e temporalidades constitutivos do ensino superior. Não é a intenção limitarmo-nos ao estilo do relato – acrescentando ao rol de experiências difíceis mais uma ou duas –; é, sim, liberarmos sentidos de interpretação que são de fato ocasionados pela conjuntura e pela oportunidade de diálogos. Ou seja, queremos evidenciar aspectos comuns e/ou particulares do que percebemos como desafiador no ensino superior em tempos de pandemia. Por isso, tomamos a chance de escrever este artigo como abertura à compreensão, não à explicação última das coisas, como momento de uma experiência ainda maleável pelos espantos que causa, não como relato de dificuldades já assimiladas pelas soluções que aplicamos e esperamos ser temporárias (ou definitivas).
Como aludido, direcionar a atenção à conjuntura requer lidar com problemas estruturais, cuja permanência às vezes é encoberta por novidades nas letras dos estatutos e dos termos legais que envolvem a educação e, especialmente, o ensino superior; e, por outro lado, também há rupturas. A separação desses aspectos pode ser feita por abstração e no discurso (como aqui), mas as questões que se impõem no cotidiano se sustentam mutuamente. Por conseguinte, consideramos inseparáveis a preocupação com o momento e a retomada crítica de percepções acerca de problemas estruturais (ou recorrentes, por uma razão ou outra) com os quais nos deparamos nas atividades que executamos nas universidades e outras instituições de ensino superior.
Dividimos em partes as abordagens, apesar de toda a intercontextualidade dessa experiência; uma experiência puxa a outra, e parte de suas inteligibilidades se encontra na configuração de como os problemas se impõem a nós. Com efeito, a crise sanitária empurrou uma crise econômica, mas na verdade – embora seja problemática esta lógica do ponto de vista ético – há quem a veja como ocasião benéfica de um aprofundamento de práticas neoliberais, as quais desagregam, acreditamos, cada vez mais laços sociais tanto nas comunidades como nas instituições acadêmicas. Trata-se do aprofundamento da solidão destrutiva que o capitalismo já aperfeiçoa há séculos e que pode, vemos agora, ser tonificada nas relações de ensino a partir do que organizamos em tempos da pandemia.
Ensino superior, pandemia e neoliberalismo
O simples e o lógico têm de ser tanto mais desafiados na vida estudantil quanto menos privilégios são dispostos para quem a vive. Entrar, permanecer e sair da universidade: itinerário aparentemente simples e lógico – tríade que é, ainda hoje, um dos maiores desafios para muita(o)s estudantes. O que muda com o cenário da pandemia? Que desafios a crise sanitária apresenta para educação superior no Brasil?
Como dito anteriormente, o acesso ao ensino superior está ligado a circunstâncias várias, dentre elas: o campo de atividades em que jovens podem considerar a formação superior como parte da sua vida (pensando em termos de educação vocacional, por exemplo) [2]; a disponibilidade de abrir mão da sobrevivência advinda do ingresso no mundo do trabalho (ou de conciliar as instâncias); o acesso a instituições próximas ao local de moradia e, ainda, as condições de permanecer no curso ao longo do período necessário ou mesmo de estender a formação na pós-graduação[3]. O acesso – na estrutura do ensino superior no Brasil – é desafio: são enormes as desigualdades que possibilitam e condicionam entrada e permanência. Se nos limitamos ao Brasil, a matrícula de estudantes na faixa etária de 18 a 24 anos é baixa (IBGE/PNAD, 2010).
Seria insensato esquecer que a educação superior é resultado e desdobramento da educação básica. O raio das análises e críticas em torno do ensino superior avança mesmo sobre os pilares da educação básica nacional. Assim, importa pensar problemáticas atuais à luz de contradições materiais e simbólicas que a sociedade brasileira carrega, não menos das reverberações locais da sanha neoliberal que se apossa cada vez mais da educação como de mais um nicho mercantil. Referente à universidade pública, sabemos que a distribuição de estudantes nos cursos superiores obedeceu, quase sempre, à lógica da estratificação social – há certo espelhamento, diríamos. Mudanças “recentes” ocorreram a partir de governos (federal, estaduais e locais) de tendência progressista, mas ameaças que sempre foram constantes estão agora ganhando substância: políticas sociais, programas de assistência estudantil e agenciamentos de permanência minguam e afetam, direta e primeiramente, a vida das pessoas mais pobres, inclusive no contexto pandêmico.[4] Ana Karruz (2018), estudiosa dos efeitos da Lei de Cotas na UFMG, diz que:
A educação superior não é monolítica: há diferenças importantes entre os cursos quanto a dificuldades para admissão e conclusão, prestígio (do curso e da instituição de ensino), oportunidades de trabalho e expectativa de rendimento. A distribuição de indivíduos em cursos conforme aspectos de origem social e trajetória educacional é entendida como um tipo de estratificação, “horizontal”, onde importa não o resultado binário de uma transição educacional (acessou ou não o ensino superior), mas sim as diferenças qualitativas dessa transição.
Dessa forma, a sequência da vida universitária na pós-graduação e na vida profissional padece de determinações qualitativas dependentes de relações de forças econômicas e culturais que criam obstáculos à concreção de oportunidades para muita gente. A pandemia tensiona ainda mais tais relações de força e seus desdobramentos na educação; qualquer fissura que dificulte o acesso ao conhecimento aumenta – ao mesmo tempo em que joga mais luz sobre os fundamentos das contradições e das desigualdades sociais que determinam quem acessa ou não conhecimento.
Muitas das respostas institucionais à pandemia ilustram como as contradições já existentes nesse âmbito esgarçam a autonomia das instituições de ensino superior, tornando-a mais abstrata que concreta. Quem se obrigou a paralisar totalmente as atividades, interferiu no planejamento de estudantes que estavam a um semestre de concluir a formação – interferência também muito sensível para quem tinha acabado de chegar. Ou seja, para quem se preparava para sair, houve a ansiedade; para quem recém-chegava, houve a frustração do adiamento, de não poder experimentar – muito menos internalizar – nem o que está envolvido no conhecimento que se produz nem o ethos da instituição.
Algumas noções disso as tomamos a partir das instituições em que trabalhamos – embora de instâncias diferentes (uma federal e outra estadual), suas escolhas (nem corretas nem equivocadas do ponto de vista deste artigo) espelham dificuldades que atravessam o Brasil. Em uma delas, o retorno foi imediato e corremos apressadamente às plataformas de ensino virtual; na outra, o semestre letivo foi suspenso para avaliarmos o cenário e delinearmos um horizonte, em parte imaginando que o retorno do presencial não tardaria. Não é opção que nos interessa apresentar aqui as vantagens e desvantagens de cada uma dessas decisões – é certo que, para além das decisões particulares, as deliberações são políticas e surtem efeitos na vida social de quem dela participa.
Fato é que tais deliberações e suas consequências envolvem significativa relativização da autonomia universitária: na universidade que suspendeu suas atividades, isso não ocorreu em todos os cursos – a formatura do curso de medicina foi adiantada sob o argumento de “engrossar” o enfrentamento da doença e atender ao chamado do Ministério da Saúde com adesões ao programa Brasil Conta Comigo. Aí a história das desigualdades regionais brasileiras se expressa: mesmo com a intenção de redistribuição e compensação de profissionais em todas as regiões, o Conselho Federal de Medicina apresentou dados afirmando que a maior parte recém-formada se voluntariou para cidades da região centro-sul do Brasil, onde está a maior parte dos cursos mais prestigiados. Não se trata apenas, certamente, de ficar próximo dos locais de origem; mas, sob o capitalismo, muito da “matéria” qualificada para trabalhos assim gravita ao redor de necessidades econômicas e financeiras (historicamente concentradas no sudeste e sul do Brasil) que não assumem como relevantes necessidades regionais humanas.
No caso em que o retorno das atividades foi generalizado e quase imediato, outras urgências se apresentaram. Em tese, toda uma complexidade de técnicas e produtos tecnológicos permitia uma retomada consideravelmente sólida do ponto de vista das atividades de ensino – um sem fim de materiais, em todo caso, foi produzido para auxiliar a docência em contexto de Ensino Remoto Emergencial (ERE) e plataformas (como o Classroom, um exemplo dentre muitos) de ensino foram trazidas a nosso cotidiano de trabalho; na prática, a divisão de trabalho dentro de corpos docentes foi acentuada. Enxergamos um novo ápice do paradigma neoliberal: a docentes substituta(o)s e colaboradora(e)s, foi igualmente imediata a ameaça de demissão (ainda que sendo maioria em muitos departamentos) – em grande parte, porque sob o neoliberalismo o corte de gastos com professores é quase regra escrita e a pandemia exige remanejamentos de interesses. A experiência do ensino superior é então (mais) bruscamente deslocada a campos não públicos de ação e isso – não será surpresa caso assim venha a ser – pode modificar essencialmente (sem retorno) a vida das instituições de ensino superior (não apenas no Brasil). Milton Santos (2002, pág. 198) nos ajuda a pensar no que implica a mudança de paradigma. Diz ele:
Uma mudança de paradigma corresponde a uma mudança completa na visão de mundo, que o novo paradigma deve representar. Em verdade, não é nossa visão do mundo que mudou, o que mudou foi o próprio mundo. A história humana é marcada por saltos quantitativos e qualitativos, que significam uma nova combinação de técnicas, uma nova combinação de forças produtivas e, em consequência, um novo quadro para as relações sociais.
Se houve atuações diferenciadas no primeiro momento, não tardou que as atividades remotas fossem “universalizadas” – com prejuízos inestimáveis para o que não pode ou quase não pode ser adaptado a isso, mas que deve guardar relações específicas com as demais temporalidades envolvidas no curso superior: estágios, laboratório, atividades de campo.... A relação talvez não transpareça de súbito, mas tal dinâmica acelera e aprofunda processos de precarização do trabalho dentro das universidades e instituições de ensino; o fio que sustenta o trabalho de muita(o)s profissionais por pouco não resiste à velocidade de adaptação imposta de cima e à convicção cada vez mais solidificada de que muita gente hoje é descartável no contexto. Se o trabalho docente já estava precarizado (excesso de carga horária e ausência de concursos para efetivos, dentre outras coisas), a implantação aligeirada do ERE atende a interesses neoliberais – os mesmos interesses que fulminam trabalhos e vidas cada vez mais intensamente. Silva e Lima (2020.p.) ironizam o sistema remoto de ensino ao dizer dele que é
Neologismo usado para realçar o ensino precário baseado na exploração do trabalho morto, forjado pela necropolítica educacional improvisada do Estado, em plena ascendência dos contágios e mortes pela Covid -19. Tipifica também a estratégia adotada que negligencia as condições objetivas de ensino no ambiente doméstico, como: material didático adequado; alimentação saudável.
A permanência dessa dinâmica e sua subsequente normalização arrisca esvaziar os principais significados do ensino superior na sociedade – parece esvaziar, enfim, o próprio ato de ensinar, de muitas maneiras, algumas das quais analisaremos adiante. Emergencial, a ambiência digital não pode ser tragada como solução; é nocivo supormos que a desigualdade de acesso de estudantes e professora(e)s a um ambiente doméstico salutar, a formações continuadas e a suportes tecnológicos mínimos e adequados é problema secundário: isso acarreta aceitar que atrasos e prejuízos individuais que existem e se multiplicarão ainda após a pandemia são de responsabilidade desses mesmos indivíduos, os quais podem prontamente seguir invisibilizados. Não houve, claro, como a instituições lidarem com tantas variáveis simultaneamente – as diferentes decisões tomadas mostraram muitas ações e intenções legítimas, para quem suspendeu ou não temporariamente as atividades.
Atentamos para ritmos de respostas diversos mas que giram a partir de eixos comuns; como ocorreu, os retornos das atividades no ensino superior acentuaram as diferenças entre gêneros, entre classes, etnias e regiões pelo Brasil, notadamente se miramos a condições de indígenas e quilombolas, migrantes e habitantes de áreas remotas (muita gente teve de retornar a casas de familiares). Para as mulheres, alunas ou professoras que antes ocupavam os bancos universitários e hoje apoiam seus filhos nas aulas remotas, a carga de trabalho doméstico aumentou muito (fora as orientações, preparações de aula, e outras atividades que continuam) e é incontornável pôr-se criticamente diante do retorno emergencial – feito quase completamente sem nenhuma discussão razoável sobre os efeitos de tudo isso na vida dessas pessoas.
Na invasão do privado como suporte do público, tornou-se corriqueiro partilhar mais do que seria adequado de nossas vidas – para além das estantes de livros ou paredes sem pintura, testemunhamos aluna(o)s que têm de unificar o tempo de trabalho e aula: relatos de colegas mostram o constrangimento de pedir a aluna(o)s que saiam do anonimato e liguem as câmeras do seus computadores e/ou celulares e, muitas vezes, se depararem com cenas de seus empregos – precarização do estudo e do trabalho convergem. Há, assim, discrepância notável entre o desenvolvimento dos objetos técnicos e a possibilidade de a sociedade desfrutar desses mesmos objetos (enquanto não acessa o sistema complexo de que eles necessitam para funcionar ou enquanto excluída completamente dos conhecimentos produzidos), e isso mostra a face perversa da globalização.[5]
Se a inteligência e a inventividade humanas proporcionaram a criação de objetos técnicos, isso ocorre como demanda da economia e da sociedade e se realiza de modo contraditório e combinado. Não é novo: já sabíamos que o acesso aos objetos técnicos depende do modo como eles se inserem na história e no território, no tempo e no espaço (Milton Santos, 2002). No espaço geográfico marcado pela globalização sob o paradigma neoliberal, prevalece sempre a exclusão das pessoas mais pobres. Se a presença do celular na sala de aula causava tensões em contextos de normalidade, agora ele é a ferramenta “doméstica” que torna o ensino formal possível: mas, para funcionar, o objeto técnico depende do meio tecnográfico. Milton Santos (2002) explica que
esses objetos nascem e funcionam em sistema, ou seja, no momento em que são criados, já aí são dependentes de outros objetos existentes. A título de exemplo, veja-se o lançamento de um novo modelo de geladeira: primeiro, há um departamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que a projeta; depois, uma fábrica para construí-la, que necessita de matérias-primas processadas de outras fábricas para ter a nova geladeira; tudo em sistema. Ao mesmo tempo da fabricação, antes mesmo, há a comercialização da geladeira e, em seguida, a distribuição; tudo novamente em sistemas interligados. Quando a geladeira está na casa do consumidor, aí também esse objeto está dentro de vários sistemas: o supermercado que a abastece, e assim por diante. Dessa forma, cada peça e cada função da geladeira fazem parte de diversos sistemas com outros objetos; na verdade, a maioria dos objetos, hoje, é oferecida em conjunto. Essa situação sistêmica, na atualidade, parece amplificar-se constantemente.
Assim, não parece ser possível que todo o sistema de objetos esteja equitativamente à disposição das pessoas – queremos acreditar que isso não escapa a quem faz campanhas para doação e compra de computadores ou celulares[6] como ocorreu em vários exemplos no Brasil, nas instituições que trabalhamos e em outras. De qualquer modo, a continuidade das atividades acadêmicas em formato virtual trouxe novos desafios à universidade (especialmente a pública); mas há princípios de autonomia e de continuidade que já estavam em risco antes da pandemia, como o aumento da terceirização; a presença do capital financeiro como suporte de financiamentos; a gestão privada dos hospitais universitários; a contratação sem concurso público; a precarização do trabalho docente subsumido e contabilizado por resultados e o corte de recursos que faz nascer outra racionalidade, ameaçando os princípios de laicidade e qualidade. A globalização perversa, como disse Milton Santos em um dos seus últimos escritos, reduz o papel do cidadão ao de usuário e, se possível, ao de coisa: o sistema é facilmente inclinável a soluções anti-humanas e desagregadoras sociais. Santos e Silveira (2001, pág. 251) afirmam que
inovações tecnológicas não se espalham de modo igualitário ao longo do espaço: em termos globais (continentes, países) e nem sequer regionais ou locais (metrópole, cidade, unidade da federação). Na verdade, as inovações chegam naqueles espaços mais vantajosos, onde se evidenciam os espaços luminosos — com densidades técnicas e informacionais que os tornam aptos a atrair investimentos —, em detrimento dos espaços opacos — sem essas densidades ou em baixo grau.
Tal estrutura nos deixa face a face com a descarada perversidade do neoliberalismo – por mais que existam redes de solidariedade e agenciamentos institucionais com objetivo de reduzir desigualdades, a assimetria da coexistência entre atraso e a capacidade de forjar soluções de urgência aprofundam abismos essenciais à forma capitalista de produção e reprodução de conhecimentos. Como atender a demandas de estudantes que residem em áreas rurais onde não há rede de celular? Como lidar com espaços domésticos inadequados para a audiência de aulas? Temos de lidar atenciosamente, inclusive, com benesses arregimentadas pelo ERE: tivemos encontros antes dificilmente proporcionáveis; professoras e professores de universidades distintas interagiram com maior frequência – o que não é de menor importância, tendo em vista que a qualidade de qualquer apropriação técnica por parte do ensino superior tem como um de seus critérios fundamentais a realidade do conhecimento como constituída de encontros.
2. TÉCNICA, AFETIVIDADE E NECESSIDADES
Tempo e espaço, de certa perspectiva, tiveram de “sumir” para que sentíssemos sua profundidade: toda reorganização espaço-temporal de nossas atividades foi feita às pressas (mesmo que em pressas de diferentes ritmos), provocando, ainda mais sensivelmente no início da pandemia, um deslocamento daquilo que nos envolve laborativa e afetivamente em relação às aulas e à produção de conteúdos. Muito do que impulsionou a retomada das atividades partiu de ímpetos diversos, relacionados a debates internos das instituições; entretanto, tais movimentos sempre estiveram unidos pela ignorância que tínhamos do que viria a ser essa “outra etapa” de nossas vidas; até certo ponto, apenas desejávamos a “devolução” de nossas espacialidades e temporalidades mais cotidianas.
À proporção que ampliou a rede de problemas técnicos, didáticos e econômicos, tornou-se mais urgente pensar, a nosso ver, a potência da (co)presença no que entendemos por formação (sua impossibilidade na pandemia segue incontestável, para nós); não tardou a que se escancarasse a concentração de acesso a objetos técnicos – necessários para o ERE – pela maior parte de nossa(o)s estudantes e por parte da docência. Isso pouco se modificou nos meses que intervalaram o retorno das aulas em instituições diversas – e sim, medidas diversas foram tomadas.[7] Diante do que foi e do que poderia ser feito, o que significa para as universidades reproduzirem como que organicamente muitas exclusões nas possibilidades de produção, reprodução e recepção do conhecimento? Muito disso era mais que previsível – bastava que olhássemos com profundidade as relações sociais elas mesmas e o papel das universidades em sua conservação; desigualdades se alargaram no campo do trabalho e isso nos confirmou, de outras maneiras, que “... o processo vital do capital não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo” (Marx, 2011, p. 382).
Testemunhamos há tempos, como se fosse inevitável, a absorção de todos os sentidos do ensino superior pela “hipersubjetivação”[8] neoliberal que empurra o indivíduo a capitalizar-se a si próprio – e a tomar a competição, não a cooperação, como fundamento da convivência entre “pares”, estudantes e docentes (não menos, em funções outras, muitas delas já sensivelmente precarizadas). Conforme penetra todos os recantos de produção do saber vinculados ao ensino superior, a mercantilização da educação nos afasta de sentidos dos quais não “deveríamos” nos afastar, sob o risco extinguir o apego ao conhecimento pelo conhecimento; não pelo conhecimento como razão suficiente de si, porém pelo conhecimento enquanto expressão de nossos modos de ser (plurais e dinâmicos, sempre) – se não nos vemos como mercadoria, mesmo que nossa força de trabalho o seja, não lidamos com os conhecimentos como destacáveis de nossas conjunturas sociais e manipuláveis pelo mercado.
Em Educação para além do capital, Mészáros diz algo que pode ser claríssimo, mas tem estado bem longe da obviedade em nossa reprodução do conhecimento cada vez mais neoliberal (Mészáros, 2008, p. 25):
Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança.
Quando se abandona essa compreensão histórica da educação como campo que se conecta de formas determinadas a aspectos essenciais de reprodução social (e toda compreensão, na história, está suscetível a abandonos), temos de nos indagar: que armadilha nos captura na indiferença a respeito de que a reprodução de conteúdos não passe disso, de mera reprodução – a ser consumida, inclusive, apenas por quem tem “capital” cultural e técnico adequados? Simplesmente aprofundaremos o desprezo por temporalidades múltiplas de formação que, cremos, são fundamentais para que o ensino superior encontre na prática seu papel no fomento de qualidade de vida e de solidariedade entre seres humanos e entre nós e o que nos é “exterior”?
Em meio a urgências identificadas nos primeiros meses da pandemia, houve casos em que professora(e)s substituta(o)s e colaboradora(e)s foram ameaçada(o)s de demissão – oferta e demanda foram alçadas às pressas a uma espécie de lei de permanência dessa parcela do quadro docente (parcela substancial, sabemos). Nesse caso, não é difícil visualizar que a temporalidade exigida pelas novas necessidades de adaptação somou-se às necessidades já existentes (em que constam incertezas inerentes ao cargo exercido por contrato) e engoliu métodos de criação e produtividade referentes a tudo que envolve o dar aula – do estudo à execução, passando pelo planejamento. Muito do tempo, inclusive, diluiu-se na adaptação nossa a plataformas e sites que deram, literalmente, a forma serial àquilo que é, por “natureza”, trama, que seja, nossos encontros com os encontros entre estudantes e conteúdos. A partir disso, mensuramos melhor algumas nuances das necessidades que atravessam as atividades concretas do ensino superior – a ponto, talvez, de percebermos com mais distinção quais delas existem e muitas vezes passam despercebidas por nós. São várias camadas, algumas delas nos interessam mais imediatamente.
Faz parte da experiência docente captar a multiplicidade de ritmos que habitam, por vezes, uma única turma. Não há compreensão simultânea de todas e todos, tampouco há a mesma apropriação de conhecimento por cada uma e cada um ao fim de um semestre, por mais bem-sucedido que ele seja em seus vários aspectos. O que possibilita determinado concerto entre tais temporalidades e apropriações interpretativas é a base do envolvimento afetivo que instala no meio certa necessidade – um “plano de imanência” no qual (não sobre o qual) se inscrevem linhas comuns entre conhecimento e vida, entre conhecimento e experiência comunitária; entre, enfim, o que podemos entender por conhecimento e atividade (social, política, cultural...).
Para além de qualquer entrada em jogo de um ideal de compreensão, postulamos que uma primordial necessidade das atividades que movem o ensino superior é que sejamos capazes de enredar afetivamente[9] quem se disponha a passar por isso – uma percepção bem mais difícil do que aparenta em um primeiro olhar despretensioso, e embaçada mais pelo vapor pandêmico que intensificou a virtualização dos encontros. Qualquer unidade na multiplicidade de ritmos engajados na produção de conhecimentos no ensino formal superior requer “respeito” a tal multiplicidade: a indiferença a isso acompanha a indiferença ao ensino ele próprio, e, consequentemente, intensifica-se a indiferença às circunstâncias que laçam afetivamente conteúdo e estudante – lembramos Ortega y Gasset: é possível compreender algo se não é sentida pelo indivíduo a necessidade desse aprendizado?[10] O abismo atual entre nossas vivências corpóreas – causado pela pandemia – representa, se miramos criticamente a imersão do ensino superior público na lógica neoliberal, a necessidade de contraposições radicais, nas instituições, ao capitalismo “ele mesmo”, por mais que isso soe, tristemente, a utopia.
O desafio global das instituições de ensino superior de repensar – politicamente – suas relações com o tempo do capital parece batalha perdida, entretanto, caso isolemos tais instituições de tudo aquilo que possibilita sua existência enquanto potência de ação social, independente do que as historiografias burguesas e estatais impõem como função social do conhecimento formal, cuja ponta de lança tem sido a adaptação a um mercado em que o trabalho de muitos serve à ambição de poucos indivíduos e corporações. As mudanças ocorridas na pandemia em nada – ou quase nada, pois seguem abertas resistências a essa dinâmica – têm favorecido um olhar mais crítico sobre uma realidade que é mais de permanência do que de ruptura caso pensemos na absorção dos sentidos do conhecimento humano (em esferas outras, também, que a do ensino superior formal) pelo monoidealismo da produção como produção de mais-valor, de que o conhecimento em suas plurais modalidades não escapa facilmente.
Nossa leitura não se pretende contrafactual, mas apenas é filtrada por necessidades bem mais amplas do que as proporcionadas via adaptação técnica à pandemia. Que essa crise específica vá passar, esperamos por princípio que sim – mas a pandemia impôs desafios que não são meramente técnicos. Conforme a necessidade/desejo de dar aulas se mescla à pesquisa, torna-se difícil – nas humanidades, pelo menos, mas sabemos que a questão é mais geral – dissociar a experiência espaço-temporal do ensino (da preparação aos encontros em sala) daquilo que estudamos como servindo a uma pesquisa. Claro, os temas podem ser disparatados: por exemplo, pesquiso Política e ministro uma disciplina de Lógica; contudo, há relações com os materiais de trabalho que convergem em saberes e experiências úteis para a pesquisa e para o ensino, simultaneamente – neste caso, a interdisciplinaridade pode ser encarada como um modo de trabalho: se há algo que o ensino superior permite, é manejarmos mais dinamicamente as bibliografias e temas vinculados a determinada disciplina.
É nesse sentido que o produzir uma aula se confunde com um processo maior de necessidades relacionadas ao estudo, à pesquisa, à produção e recepção intelectuais. Como avaliar aprendizados quando o modo de produção intelectual é profundamente uniformizado por uma necessidade abstrata como o lucro? Qual fluxo de necessidades suporta os arranjos que nos conduzem ao ensino superior: o de cima para baixo, concernente a adaptações dos meios de ensino a finalidades totalmente extrínsecas às operações educativas; ou o inverso, concernente aos desejos e possibilidades de comunicar urgências da comunidade e de fazê-lo, na medida do possível, prazerosamente?
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi inevitável, na trajetória que nos trouxe ao presente artigo – a qual é atravessada pelo choque entre ensino superior e pandemia –, retornarmos a questões relacionadas a como o capitalismo se estrutura redimensionando todas as formas de fazer e de saber; assim, constatamos que rupturas e continuidades em nossas atividades podem ser desenhadas em um plano comum de inteligibilidade – no qual identificamos movimentos e tensões de sentido no que desejamos para o ensino superior e em como podemos comunicar tais desejos. Inevitavelmente, o contexto de pandemia acirra conflitos que já existiam há décadas – para uma experiência neoliberal desse contexto, notamos algo que permanece quase como condição de realidade: a morte precisa acessar, com facilidade, grande parte da população, e os critérios seguem sendo classe social, gênero, pele, expressões desejantes, zonas de habitação, região geográfica...
Certamente, no que diz respeito ao ensino superior, não podemos pretender o retorno e/ou a defesa de qualquer pureza de ideais de comprometimento das instâncias de ensino superior no Brasil ou no mundo – o conhecimento, em sua existência concreta, dispensa toda menção a “purezas” e coisas correlatas; o que fazemos nada mais é que repor propostas de sentido para o conhecimento e fazer isso esclarecendo e reafirmando conflitos (necessários em democracias) e resistências (pois trabalhamos, em diversos âmbitos, com concepções de cunho social e político a respeito do conhecimento). O conhecimento técnico que está combatendo a pandemia vem de pessoas que, em sua maioria absoluta, obtiveram sentidos de vida também em contato com instituições de ensino superior; a extensão e comunicação de sentidos e conhecimentos assim obtidos são fundamentais, por isso mesmo, naquilo que nos envolve cotidianamente como partes de comunidades que se entrelaçam e se entreajudam.
Em outras palavras, e para concluir, a ocasião trágica que se forma há mais de um ano nos obriga a repensar sentidos concretos de solidariedade como imanentes a propostas de saber vinculadas a programas de nossos ensinos superiores – não a solidariedade, confundível com caridade, que se sobrepõe a estruturas sociais em tempos problemáticos para sanar momentaneamente alguns sintomas de crise. A impregnação do corpo social pelos saberes trabalhados no ensino superior – se pensamos nisso como positividade concreta – depende de aspectos que escapam à brevidade deste texto, mas uma coisa tentamos, aqui, ressaltar: sobre os aspectos, que há vários a serem retirados da relativa invisibilidade (como a mútua implicação entre tecnicidade e afetividade na constituição de paradigmas educativos); e, consequentemente, que muitos dos tempos e dos lugares que constituem o ensino superior precisam se vincular de maneiras outras – que não as preconizadas pelo capitalismo – com as necessidades habituais dos corpos coletivos (comunidades, especialmente).
REFERÊNCIAS
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Cómo citar en APA:
Silva, R.L.B.R.da & Silva, D.S da. (2021). Ensino superior, pandemia e trabalho: rupturas e continuidades. Revista Educación Superior y Sociedad, 33(2), 31-52.
[1] Não passa pelas nossas mentes que os instrumentos que selecionam o ingresso nas universidades sejam justos e eficazes. Consideramos que qualquer instrumento seletivo de ingresso no curso superior tende, antes de tudo, a classificar estudantes tecnicamente mais efetiva(o)s com o status de qualificada(o)s, eficientes e preparada(o)s para os cursos de mais prestígio, o que pode ocultar o fato de que o conhecimento cobrado é constituído e definido por relações de força que definem o que é socialmente relevante. No que se refere às médias de nota de corte para ingresso no ensino superior em Filosofia e em Geografia, se tomamos o SISU de 2020 (Sistema de Seleção Unificada) – padrão de pontuação na maioria das universidades brasileiras – elas foram de 633.28 e 616.67, respectivamente. Cf. a página www.querobolsa.com.br/sisu/notas-de-corte acessada em 02/03/2021, às 17h45.
[2] Uma pesquisa de 2010 da Fundação Joaquim Nabuco detalhou as trajetórias de vida de estudantes do Norte e do Nordeste do país, seus anseios em relação ao mundo do trabalho e outros itens. Parte dos resultados mostrou que o processo de interiorização das universidades configurou-se como uma política pública que contribuiu para pôr em ação as disposições de jovens para a vida acadêmica. Melo (2013).
[3] É conveniente, nesse sentido, a divisão de Ana Karruz em educação vocacional e acadêmica. A educação vocacional evoca a discussão de Bourdieu (2007) sobre herança material e cultural, ou seja, diz respeito a como se constroem as identidades sociais das crianças, produto dos efeitos acumulados da transmissão cultural da família. Dados do ENADE (2007, 2008 e 2009) mostram que filhos de pais e mães que tiveram exposição ao curso superior tiveram chances significativas de ingresso e permanência em cursos de maior prestígio (Carvalho e Ribeiro, 2017) – outro dado passível de múltiplas interpretações, mas tomado aqui como sintoma de complexos sociais que se arraigam na educação brasileira.
[4] No momento de escrita deste texto, o Ministério da Educação anunciou corte de 18% da verba das universidades públicas; isso atinge, diretamente, os recursos para atendimento do Plano Nacional de Assistência Estudantil, complicando tanto a continuidade do atendimento quanto a necessária ampliação de políticas de assistência. Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/politica/1556819618_348570.html. Acesso em 29/03/2021, às 15h30).
[5] Um levantamento realizado pelo Movimento Parent in Science, entre abril e maio de 2020, com mais de 15 mil professores e professoras, alunos e alunas de pós-graduação e pós-doutorandos de diferentes regiões do Brasil confirmou o que algumas mães pesquisadoras já vinham relatando: a pandemia de covid-19 aumentou a desigualdade entre homens e mulheres na vida acadêmica. Os resultados desta pesquisa evidenciam que, especialmente para submissões de artigos científicos, mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente com idade até 12 anos) foram os grupos cuja produtividade acadêmica foi mais afetada pela pandemia. Por outro lado, a produtividade acadêmica dos homens, especialmente os sem filhos, não foi afetada.
[6] Dados de 2018 da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES, promovida pela Andifes, mostram que mais da metade dos alunos vêm de famílias de baixa renda, com rendimentos de até um salário mínimo por pessoa. Além da questão econômica, o ensino a distância ainda pode representar uma barreira para pessoas com deficiência (PCDs), tornando ainda mais excludente e impossível que essas pessoas possam acessar as políticas já pensadas para elas no que se refere à acessibilidade.
[7] Na Unespar, foi feita distribuição de celulares entre estudantes juntamente aos chips que os conectavam à internet; durante um tempo, houve também entrega de textos nas casas de estudantes; a biblioteca permaneceu um tempo aberta para agendamento de empréstimos – o livro era, então, entregue após higienização; em alguns cursos, como o de Filosofia, o whatsapp tornou-se instrumento de aproximação entre as turmas e entre estas e professora(e)s. Na UFG foi constituído um comitê de crise formado por várias comissões para diversas frentes, desde a produção de máscaras e EPI´s, a arrecadação e conserto de computadores para doações e empréstimos; o financiamento de dados móveis até a adoção de uma a oferta de cursos para professores aprenderem a usar plataformas digitais.
[8] Pensamos em como Dardot e Laval expuseram a hipersubjetividade em A nova razão do mundo (Dardot e Laval, 2016), elemento constitutivo da sociedade neoliberal centrada no indivíduo como ponto discreto inteligível por si mesmo dentro da lógica da internalização da concorrência – trata-se, ao fim, de minimizar a subjetividade em diversos aspectos, como aquele atrelado ao exercício de direitos (o sentido, talvez, mais caro às democracias).
[9] Filosoficamente, trabalhamos com a perspectiva espinosana de que o conhecimento, mesmo o racional, é afeto – e não há objetividade que exista que nos isente de uma aproximação afetiva com a realidade que nos cerca; remetemos a duas proposições do livro de Espinosa, Ética (Spinoza, 2009, pp. 159-162), que sintetizam tal perspectiva – a primeira: “Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto verdadeiro”; e a sétima: “Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado”; para as implicações políticas dessa filosofia, conferir Silva, 2020.
[10] Pensamos na palestra traduzida em português como “Sobre o estudar e o ser estudante”, publicada no tomo IV de suas Obras completas; remetemos à antologia em português, Ortega y Gasset; Sanchéz, 2010, pp. 62ss.